quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE III: A BOSSA E AS INFLUÊNCIAS

Edu, Aloysio de Oliveira e Nara Leão



Santuza: Você acha, então, que você não teve influência musical do seu pai?


Edu: Não, não acho mesmo. Eu tive influência exatamente de outras pessoas, porque a minha história musical toda começou com essas pessoas todas: com Vinicius [de Moraes], com Tom [Jobim], com Carlinhos [Lyra], com Baden [Powell], com Oscar [Castro Neves], enfim... Foi a partir desse momento que eu fui comprando os discos, me interessando pelo trabalho deles e convivendo com eles, que eu fui virando músico. Eu não sabia que ia ser músico.


Santuza: Então foi por outros caminhos a sua formação musical. E o seu segundo instrumento, qual foi?


Edu: Foi o violão. Eu fui indo para o violão. Quando eu descobri o violão, eu fiquei realmente ligado em música.


Santuza: Quando? Teve a ver com a bossa nova ou foi anterior?


Edu: Teve a ver com a bossa nova, 57, 58. Aí começaram a chegar os discos do João [Gilberto], do Carlinhos [Lyra]... O primeiro disco do Carlinhos, na Polygram, eu lembro que ouvi nessa vitrolinha mesmo. Não lembro mais o título, mas tinha aquelas primeiras canções do Carlinhos da Philips, ainda não era nem ainda Polygram. O João gravava na Odeon. Aí a bossa nova foi uma revolução.
Eu tenho um grande amigo, o Theo de Barros, que já tocava violão muito bem, e aí eu fui me desvencilhando do acordeon. E fui aprendendo a tocar violão meio assim na marra: aprendia com um, aprendia com outro. E consegui fazer com que me dessem um violão, que era um instrumento não muito bem visto na época. Era um instrumento menos nobre, que tinha uma certa conotação de instrumento de botequim, de malandragem, ainda peguei isso. E ainda peguei a história de compositor não ser bem uma profissão.
Algum tempo depois, participei de um trio vocal com Dori Caymmi e Marcos Valle. E começamos, com esse trio , uma carreira semi-profissional, participando de programas de televisão, frequentando as casas dos compositores. Acho que aprendi muito,nesta época, também. Marcos tocava piano muito bem e o Dori já era um mestre de harmonia.



Santuza: Você não pensava em ser músico, tanto é que você chegou a estudar Direito, não é?


Edu: Estudei Direito sem muito empenho, dormindo muito nas aulas.


Santuza: Mas você se formou em Direito?


Edu: Não, fui até o terceiro ano. Eu estudei na PUC três anos.


Santuza: O que eu acho interessante nos músicos da sua geração é que eles entraram no meio musical assim de repente, por acaso...


Edu: Muita gente que ficou no terceiro ano de Arquitetura, não é?


Santuza: Arquitetura, então, é impressionante. Quase todos os músicos fizeram Arquitetura. (risos)


Edu: Eu, surpreendentemente, nunca consegui ser bom aluno em matemática.. Eu digo que é surpreendente, porque a música tem uma relação muito forte com a matemática. E eu tinha um total pânico de matemática e total inabilidade em lidar com números. Aí fui fazer o Clássico para ficar livre disso e fui para na PUC fazer o curso de Direito. Mas já no terceiro ano eu praticamente não ia, só ia para tocar violão no diretório. E, quando vi, já estava mesmo na música.


Santuza: Então você não tinha mesmo idéia de ser músico?


Edu: Não, nenhuma idéia. E eu tive muita sorte, porque eu nem enfrentei esse momento em que as pessoas têm que decidir o que fazer da vida: as coisas foram acontecendo, foram rolando e, quando eu vi, eu já não estava mais na faculdade.


Santuza: Já estava entrando na vida artística?


Edu: É. Mas eu não ia ser advogado, quer dizer, eu estava fazendo Direito para seguir a carreira diplomática. E eu não sei como eu estaria hoje em dia, porque não tem nada menos parecido comigo do que a carreira diplomática. Mas, enfim, isso era o que eu tinha mais ou menos projetado para minha vida. Mas fui salvo pela música.


Santuza: Quando você sentiu que você se tornou músico, que a sua identidade passou a ser marcada pelo fato de ser músico?


Edu: Bem, eu conheci o Vinicius e, nessa mesma noite, ele fez a letra para uma música minha.


Santuza: Isso foi em que ano?


Edu: 62, pode ter sido. Eu tinha 19 anos quando conheci o Vinicius numa festa,em Petrópolis, na casa da Olivia Hime.Eu acho que essa letra do Vinícius deve ter me dado a impressão de que eu valia a pena, porque o Vinicius era um ídolo que eu conhecia não só da música popular, mas da poesia, que eu lia muito. E, de repente, eu tinha uma música com o Vinicius.


Santuza: E que letra é essa?


Edu: Só me fez bem.. Nessa mesma festa, ele foi lá para um canto e fez a letra. Isso passou a ser uma espécie de passaporte para eu me apresentar em qualquer lugar. A partir daquele dia eu era parceiro do Vinicius de Moraes .Não era mais o cara da faculdade que fazia uma musiquinhas.


Santuza: Aí você passou a ser o músico que, por acaso, estava na faculdade. (risos)


Edu: E não é só isso, quer dizer, não só a questão da canção com o Vinicius, mas o acesso que eu tive a todas as outras pessoas por causa do Vinicius: o Tom [Jobim], o Carlinhos [Lyra] e o Baden [Powell], que eram os três parceiros principais dele, e depois o Luisinho Eça, o Oscar Castro Neves, enfim, todo mundo que fazia bossa nova na época. E tinha essa história das casas do Rio de Janeiro, que eram abertas para todo mundo e onde se tocava música o tempo inteiro, que foi do que a minha geração se beneficiou fantasticamente.
Mas eu não tive esse momento de dúvida nem nada, as coisas foram acontecendo. As músicas começaram a ser gravadas, as pessoas começaram a pedir músicas. Eu achei, inclusive, que a vida ia ser assim sempre. (risos) Porque era uma coisa muito natural: as músicas começaram a ser gravadas , tocavam no rádio, eu entrei no Festival, ganhei o primeiro lugar, estava fazendo uma peça do Guarnieri, comecei a fazer shows com o Trio Tamba e a Nara Leão. , gravei meu primeiro disco. Então veio vindo tudo ao mesmo tempo. As coisas vieram muito, eu não vou dizer fáceis, mas naquela época era bem mais fácil uma pessoa chegar não só a uma gravadora como a tudo mais. O espaço entre o artista e o público era muito menor.



Santuza: Destes músicos todos dessa primeira geração da bossa nova, quem você acha que mais te influenciou? Foi a batida do João Gilberto?


Edu: Olha, tantas coisas... Porque a bossa nova mexeu em tanta coisa, foi uma revolução que teve uma importância tão grande do ponto de vista formal. Bossa nova é revolução harmônica, melódica, poética, e vocal. E mais ainda: instrumental. Você tem uma nova batida, com um novo cantor, como nunca teve no Brasil nada parecido, como foi o João Gilberto. Porque a voz dele é integrada no violão, a voz vai por dentro do que ele está tocando, é como se fosse uma coisa só. Não tinha isso na época. Quer dizer, você tinha o [Dorival] Caymmi, que cantava com o violão, mas era completamente diferente. Só isso já justificaria o movimento inteiro, porque é uma mudança. E cantando com a voz curta, só que absolutamente afinada e super interessante, nova. E depois, acordes nunca usados em música brasileira e melodias também, porque os acordes eram novos, as cadências eram originais..E aí as letras começaram com o Vínicius, depois outros autores. Quer dizer, era uma mudança formal, uma revolução como nunca houve, eu acho. É realmente o início, o grande início da música moderna brasileira. É como se fosse o impressionismo do final do século XIX, que deu raízes de tudo quanto é jeito. Para mim, tem essa importância em relação à música brasileira.
Agora, com influência não só do jazz. As pessoas só falam no jazz, mas não é só jazz; tinha influência dos compositores antigos e muito da influência do Villa-Lobos já desde daquela época. Naquela época você já vê que as canções mais líricas de todos os compositores da época - do Tom [Jobim], do Carlinhos [Lyra], do Baden [Powell] - têm a alma do Villa. Eu acho inclusive que eu tive uma influência do Villa, talvez desta forma indireta. Eu acho que no começo foi através da própria bossa nova, que eu recebi e apreendi a alma do Villa, que já veio filtrada para mim através dos outros compositores. Depois fiquei ouvindo Villa o dia inteiro.
E eu acho que é um grande engano, porque as pessoas têm uma mania de simplificar as coisas, dizer que a Bossa nova é o jazz brasileiro. Brazilian jazz. É muito mais do que isso, porque jazz brasileiro seria uma filial pobre, um McDonaldszinho. Se fosse, não teria voltado para os Estados Unidos, porque eles são muito espertos, não são nada bobos. Eles sacaram que tinha influência do jazz? É lógico que tinha, mas tinha do Villa-Lobos, tinha do Debussy... Tinha influência d
e tudo e músicos e compositores brilhantes,com uma nova gramática, um novo ritmo sincopado, um novo idioma.
Então, revolução no canto, revolução harmônica total e absoluta, a harmonia jazzística também, com certeza, mas não tem "acorde americano". Alguém tem que pedir para os jornalistas, para pararem de falar besteira, como essa do "acorde americano". Acorde agora tem nacionalidade? tem um acorde espanhol, tem um acorde brasileiro? Não tem isso, as harmonias pertencem a todo mundo e a quem descobre. Parece a coisa do samba: o samba é feito passarinho, é de quem pega primeiro. Mas, enfim, foi uma revolução harmônica e melódica interessantíssima, que veio não só do jazz como da própria música brasileira antiga. Tinha influência do Caymmi, tinha influência do Ary Barroso, tinha influência do Noel, na música, na letra; enfim, do Villa, do Radamés [Gnattali], do Garoto, que era pré-bossa nova, do Johnny Alf... É por isso que hoje você encontra um garoto de 19 anos, de um lugar distante do Nordeste ou do Sul , e estão lá na música dele todas aquelas harmonias que vieram do João, do Tom, do Caymmi...



Heloísa: O Cazuza, por exemplo, com aquela música 'Faz parte do meu show'.


Edu: Que é uma música tipicamente bossa-nova.Então é um engano o historiador querer determinar o dia em que a bossa nova começou e o dia em que acabou. O que acontece é o seguinte: a moda da bossa nova acabou, como a moda do impressionismo acabou um dia. Os movimentos têm seus piques de moda; aí vira uma dança, ou não vira mais nada. Agora, o movimento que realmente revoluciona e que tem importância real, se transforma, e permanece para sempre. É essa a história dos inventores. O impressionismo, que Debussy e Ravel inventaram, não acabou. Ele continua na música do Stravinsky, continua num jovem compositor clássico ou popular, a música de cinema está cheio de "debussysmos", e "ravelismos". Então essas coisas que são inventadas de verdade não acabam.