quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE V: ANATOMIA DA CANÇÃO

Santuza: Agora, uma coisa que me chama atenção na música brasileira, na música popular, é o fato de ela ser muito flexível e estar o tempo todo se transformando, e se transformando através de um processo muito rico. E eu não sinto isso acontecer, por exemplo, em países europeus.


Edu: Mas eu acho que para eles,da música popular, o passado brilhante, o excesso de conquistas, foi pernicioso, de uma certa maneira. Acho que há um certo pânico desse passado, pânico de Wagner, Debussy e Ravel e Stravinsky, por exemplo, talvez uma sensação de que tudo já foi inventado, não há mais novidades a serem descobertas. Tanto que você conta nos dedos os grandes compositores franceses (e que normalmente vão embora) como Michel Legrand ou Michel Colombier; os dois têm, ou tinham, praticamente 90% das suas carreiras nos Estados Unidos. Bem, eu não sei, pode até ser que eu esteja mal informado, mas eu não conheço nenhum grande compositor francês, a não ser esses dois, assim com harmonias riquíssimas.
A gente lembra de grandes autores, como Jacques Brel, Brassens ou Piaf por exemplo, mas a letra tem uma força muito maior, é mais uma coisa de trovador. As letras são fantásticas, são poetas que eu adoro, mas a música segue quase como se fosse um suporte , é quase um acessório para contar (cantar) as suas histórias. A música está em segundo plano realmente. Para o ouvido de um compositor, é menos interessante.. Não que eu não ache a letra importante; muito pelo contrário, acho importantíssima. Mas acho exatamente que deve haver esse equilíbrio: para letra muito sofisticada tem que ter uma música também muito sofisticada.



Santuza: Esse procedimento isomórfico como diz Augusto de Campos, em que letra e música se complementam. É isso que realiza a canção, não é?


Edu: Exatamente. O que provoca, às vezes, o seguinte: uma canção que tem uma belíssima letra acaba sendo muito popular, fica conhecidíssima, e depois ela passa a ser gravada instrumentalmente, porque ela é conhecida e as pessoas gostam. Por outro lado há canções que não resistem a uma versão instrumental.
Agora, outro dia, relendo aquêles poemas doT.S. Elliot sôbre gatos (o que deu a idéia para a criação do musical Cats), num poema que se chama The Naming of Cats, êle diz que devem haver três nomes para um gato: um nome comum tipo Peter ou Augustus, sem graça, ou então um nome melhor mais digno e original tipo Quaxo, Coriopat ou Bombalurina, nomes que nunca poderiam ser de outros gatos. Mas existe um nome, um único nome que só o gato sabe e jamais confessará.
E aí eu comecei a pensar que o letrista banal coloca a letra sem graça, o bom letrista escreve a letra mais original, mas o letrista genial, e eles felizmente existem, é o que é capaz de descobrir o verdadeiro nome do gato. E aí eu penso nos letristas que eu admiro tanto, principalmente aqui do Brasil e dos Estados Unidos. Nos que adivinham o terceiro nome do gato: e acho que todos nós sabemos quem são êles. Porque eu também acho que uma boa música contém, em código, a sua verdadeira letra .



Santuza: A impressão que eu tenho é que tanto na França quanto na Itália há um fosso imenso entre a música erudita e a música popular; são duas realidades diferentes. E aqui, como nos Estados Unidos, há uma interpenetração maior entre erudito e popular, e daí vem a riqueza.


Edu: Os americanos têm um nome para isso, "third stream" inventado por Gunther Schuller nos anos 50, que seria uma música nem popular nem erudita, mas que mistura elementos destas duas correntes, criando então uma terceira. O problema é que se o compositor erra no tempêro, a coisa azeda, a música vira mesmo é de quinta.O Leonard Bernstein, o Morton Gould e o próprio Schuller acertavam sempre... Aliás, eu tenho a maior admiração pelo Bernstein. Ele atuou em várias áreas, fez trilha para o cinema, regeu ópera e concertos,deu aulas magistrais na televisão, enfim, não teve medo de coisa nenhuma, de achar que estava fazendo música menor porque estava escrevendo um musical da Broadway. E não era menor mesmo. Gershwin também, a mesma coisa. Gosto muito desse tipo de compositor que vai lá, se arrisca, leva porrada o tempo inteiro, porque existe essa ala ortodoxa, erudita, que não permite muito a entrada de seres estranhos. A ala que sabe de tudo,menos inventar alguma coisa. Que disseca, analisa, teoriza e fica só nisso: vomitando teorias e regras e reproduzindo tudo que já foi feito.