quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE VI: POPULAR, CLÁSSICO OU ERUDITO

Santuza: Tem um tipo de atitude que marca a sua geração. Os músicos da sua geração, da bossa nova para cá, começaram a tensionar o campo do popular, na medida que passaram a trazer informações da área erudita para este campo. E acho você uma figura muito paradigmática disso. A música se torna muito mais sofisticada, começa-se a ter músicos com formação teórica, que lêem partitura, que estudam música.


Edu: Ah, sim. Mas isso começou com a bossa nova.


Santuza: Pois é, a partir da bossa nova, e a sua geração retoma isso - alguns músicos, óbvio, da sua geração. E acho que você lida muito com isso. Você atua no campo do popular, mas para a gente que conhece a sua música é difícil dizer que você é um compositor popular, porque você está sempre entre o popular e o erudito, eu acho.


Edu: Mas eu não tenho formação erudita.


Santuza: Mas a sua música é extremamente sofisticada.


Edu: Mas sofisticação é uma outra coisa. Eu não tenho formação erudita, quer dizer, eu nunca tive nenhum plano na minha vida de escrever um concerto para piano e orquestra, por exemplo. Não é que eu não goste, é que a minha escola é completamente diferente, eu acho que eu não saberia fazer e "não seria a minha praia", como se diz. Agora, existe um estilo de música popular mais sofisticada mesmo. Só que sofisticada num bom sentido, porque essa palavra é usada também de maneira negativa.


Santuza: Às vezes num sentido hierarquizante , não é?


Edu: É. Eu tenho lido muito, às vezes, assim: "sofisticado demais". O que quer dizer sofisticado demais? Parece que é um erro, que é um engano, se fôr popular não pode ser sofisticado. Se fôr popular de verdade segundo este pensamento, tem que se preocupar em se ater às raízes populares. É aquela velha história das harmonias mais elaboradas profanando a música popular "pura".


Kate: Agora, tem uma coisa que a bossa nova compartilha com o jazz... Por exemplo, a música folk nos Estados Unidos, a música country, pode tocar milhões de músicas maravilhosas com só dois acordes. Mas o jazz e a bossa nova não. Trabalham de maneira completamente diferente.


Edu: Certo. Completamente diferente. E foram se misturando também com essa música chamada "erudita". Mas quando você lembra das Gymnopédies do Satie, uma obra prima com pouquíssimos acordes, tão simples que poderia ser chamada de popular...


Santuza: Mas eu acho interessante o fato de que muita gente da sua geração, ou de uma geração anterior, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, como a geração do jazz, do bebop, do cool jazz, começa a confundir essa hierarquia erudito e popular. O Piazzola, por exemplo, é erudito ou popular? Não sei. Eu acho interessante isso. E aí essas distinções começam a ficar confusas, não é?


Edu: É popular, mas é um popular mais desenvolvido. É que essa coisa de erudito é complicadíssima; no Brasil não se achou um termo melhor do que "música erudita". Acho um têrmo ruim, meio pedante. Acreditou-se (acho que foi o Mario de Andrade) que música "clássica" seria inadequado, porque se refere a apenas um período, não é? Mas em qualquer lingua do mundo, o têrmo classical music,musique classique etc. se refere à musica de concêrto,de forma muito mais abrangente, não designa apenas um período da história da música. Berg , Bartók e Stravinsky, são clássicos apesar de terem sido "modernos"; Debussy e Ravel são clássicos, mesmo tendo sido "impressionistas".


Santuza: As idéias de "clássico" e de "erudito" também são muito carregadas de valor. E quando você ouve uma música como a do Gershwin, por exemplo, essas distinções ficam abaladas.


Edu: O Gershwin foi muito criticado na sua época.Porgy and Bess não era considerada uma ópera até há poucos anos atrás. Não era apresentada no Metropolitan, porque era considerada apenas um musical, que não tinha a estrutura correta de uma ópera. E era uma ópera americana. E é tão boa quanto qualquer boa ópera e melhor do que muita ópera tradicional. George Gershwin: um compositor judeu de Nova York que escreveu uma música negra como ninguém.


HeloHeloísa: Eu acho que a gente fala que têm esses componentes eruditos nas obras do Tom Jobim e do Edu muito em função das harmonizações, que são muito ricas, não é?


Edu: Das harmonizações, da forma do arranjo, ou da própria pretensão mesma do músico de esticar um pouco a corda, de fazer canções menos executadas em rádio, porque são longas demais, contam uma história um pouco mais densa, sei lá. Mas eu acho que é isso, eu acho que não tem limite, eu acho que essas fronteiras vão se misturando, vão acabando. Como é que você vai analisar uma música do Piazzola que, aliás, hoje em dia está na moda? Hoje ele é sucesso na cena clássica, todos estão gravando o Piazzola.
O Yo-Yo Ma fez um disco só de Piazzola, o Gidom Kremer, que é um violinista americano fantástico, gravou um disco só de Piazzola. Quer dizer, são os músicos eruditos que estão valorizando a obra do Piazzola tocando uma coisa que é popular, que é tango, é música de rua. Só que um tango feito de uma maneira que ninguém pensou em fazer antes, misturando o tango tradicional com a linguagem moderna. Piazzola estudou com a Nadia Boulanger em Paris, mas não quiz ser compositor erudito: inventou aquêle tango novo, revolucionário, que agora corre pelo mundo todo .



Santuza: Você ouve muita música erudita, não é? Eu sei que você adora a música de Stravinsky.


Edu: Muito. E não só Stravinsky.


Santuza: Mas Stravisnky não é o seu preferido?


Edu: Um dos preferidos.


Santuza: Quem são os seus preferidos?


Edu: Stravinsky e Bartók, Debussy e Ravel. O Mahler que uma espécie de caso à parte, desprezado como compositor em sua época, depois ressucitado pelo Bernstein. A musica classica americana do Copland do Bernstein e do Barber. Eu gosto muito do Mahler, porque ele começou a fazer um tipo de música romântica em uma época em que a música romântica era considerada absolutamente careta. Foi rejeitado pelos próprios vienenses. Os vanguardistas achavam que a música não podia mais priorizar a melodia , que era uma coisa ultrapassada, mas ele continuou fazendo o seu trabalho.. As sinfonias são magistrais. O argentino Ginastera, tem um trabalho belíssimo. E tem o Richard Strauss, a música dodecafônica de Alban Berg, o Boulez...Acho que conheço bem mais os compositores do final do sec XIX e os do sec XX. O Copland me lembra - só como idéia de trabalho - o Villa, porque o Copland partiu para uma música americana; ao invés de ficar copiando os europeus, ele foi fazer uma música americana, aquelas coisas de rodeio, Billy the Kid , The Red Pony, incluindo o jazz como um dos ingredientes principais.


Santuza: Tem a ver com aquela sensibilidade modernista de cultivar a tradição.


Edu: É, sem preconceito com o jazz, usando o jazz ali... É bem próximo do que o Villa estava fazendo também..


Santuza: E o Charles Ives?


Edu: O Charles Ives eu conheço pouco. O Ives é completamente fora do comum, é interessantíssimo. Eu nunca comprei uma partitura dele, nunca olhei assim de perto. E quem mais? Prokofiev, que é um compositor também que me interessa muito. E o Villa [Lobos]... é claro. Tenho uma coleção de discos e de partituras do Villa , que eu vou conseguindo quando viajo. Lembrei agora de uma trecho de partitura do Charles Ives que eu vi num livro de Paul Griffiths sôbre a música moderna em que havia um bilhete do Ives para o copista que era assim: " Mr. Price: Por favor não tente melhorar as coisas!todas as notas erradas estão certas".


Santuza: Aquela "Abertura" do Grande circo místico me lembra muito o Stravinsky, aquela coisa circense do Stravinsky.


Edu: Você está lembrando de uma peça orquestral que o Stravinsky fez chamado Circus polka, não é? Pode ser, mas me lembra mais, um compositor que também eu gosto muito, que trabalhou anos com o Fellini, o Nino Rota.


Santuza: E do Satie, você gosta?


Edu: Muito, muito. As peças para piano com nomes estranhos, "Morceaux en forme de poire", "En Habit de Cheval" "Aperçus Désagréables" e as três "Gymnopedies", lindíssimas.


Santuza: Você costuma ouvir o Radamés?


Edu: Existem poucas gravações do trabalho sinfônico do Radamés, no Brasil,infelizmente. Mas havia um sexteto genial do Radamés com o Chiquinho do acordeon, José Meneses, Luciano Perrone que eu consegui transcrever para CD.


Santuza: E o Grupo dos Seis, de Paris, você gosta? Tem o Poulenc, o Darius Milhaud...


Edu: Ah, tem o Milhaud, que é fantástico, o Poulenc também. Do Grupo dos Seis são os dois que eu mais gosto. O Milhaud tem Saudades do Brasil, que tem umas músicas brasileiras que ele enxertou, botou uns trechinhos ali... Ele foi adido cultural aqui, não é?


Santuza: É, do Paul Claudel.


Edu: O Poulenc também que tem coisas interessantíssimas. Tem o Fauré, que eu gosto muito também, que acho que foi professor do Debussy. E o Honneger.