quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE VIII: ARTE, REVOLUÇÃO E CENSURA

Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, 
Zuenir Ventura e outros grandes nomes da 
nossa cultura na "Marcha dos 100 mil"
Santuza: Muitas vezes eu vejo comentários sobre você que o associam a um grupo geracional vinculado à canção de protesto, à politização. E eu tendo a discordar um pouco, pelo seguinte: é claro que você é ligado a uma geração politizada e, naturalmente, há uma questão política na sua música. Mas eu acho que a sua música é muito rica e não se reduz a isso.


Edu: Mas eu acho que na época - aí voltando àquela coisa da mídia - as pessoas tinham que ter um label. Era importante vender certo tipo de compositor assim, com esse rótulo: compositor de protesto. E eu discordava muito disso, exatamente porque a minha formação era completamente diferente e eu cansei de ouvir compositores que eram considerados politicamente corretíssimos, mas musicalmente insuportáveis.


Santuza: Pois é, porque teve canção de protesto muito ruim, não é? E houve um momento, nos anos 60, em que se valorizava muito a substância em detrimento da forma. Falava-se muito em "mensagem", lembra?


Edu: Se eu lembro!


Santuza: O professor de Português mandava ler um livro e pedia para você escrever sobre a "mensagem" do livro. Então o estilo do autor, a forma como ele escreve, perde a importância, porque o importante é a mensagem. Houve esse momento sim, em que o conteúdo adquiriu um peso imenso e a forma dançou.


Edu: É, mas eu fui ficando com os amigos que pensavam mais como eu. Quando eu fui fazer o Arena conta Zumbi, com o Guarnieri, a gente queria tentar fazer a música mais elaborada possível. Eu me lembro que uma música minha, chamada "Canto triste", foi escrita para o Zumbi e o [Augusto] Boal não quis. O Boal era mais rígido do que o Guarnieri. E o Guarnieri é aquele italiano, lírico, que adora grandes melodias e me estimulava a fazer isso o tempo inteiro. Ele queria as canções da maneira mais elaborada possível. Ele conhecia as óperas de Verdi, de Puccini. Gostava de música,de harmonia,tinha um bom ouvido. Tocava um pouco de piano, o pai era maestro, a mãe era harpista; então era um parceiro que estava o tempo inteiro à espera de uma boa melodia. Inclusive ele já tinha trabalhado com o Carlinhos [Lyra].
Eu nunca acreditei que arte revolucionária é aquela que abre mão da forma revolucionária. Por quê é que tem que ser assim? Em nome de que, quem decide isso?



Santuza: Não foi o Maiakovsky que disse que "não há arte revolucionária sem forma revolucionária"?


Edu: Na Rússia, durante o Stalinismo, havia uma censura estética mesmo, a música avant-garde era permitida até um certo ponto, o que era considerado decadência burguesa, ou formalismo, era eliminado quer dizer, os compositores que partiram, evidentemente não sofreram com isso, como o Stravinsky e o próprio Prokofiev. Já o Shostakovitch permaneceu na Rússia e sofreu muito com essa situação. O que era considerado anti-popular porque formalista, era descartado. Não era nem uma questão só de censurar o texto, a parte literária: havia um limite para a composição musical, quer dizer, notas não permitidas.Aí você volta para a Idade Média mesmo, volta ao diabolus in musica, tudo de novo.
Mas voltando ao Brasil daquela época, as letras eram importantes, mas a música, nem tanto. E eu não conseguia administrar isso direito. E aquela música, de fato, não me interessava. Tinha uma certa ala intelectual brasileira que valorizava mais a mensagem do que a música e que implicava, por exemplo, com o Tom - e eu ficava muito puto com isso -, como se ele fosse sofisticado demais, ou alienado, porque cuidava de harmonia.
Não lembra o Stalinismo? Eu também achava que a gente deveria falar de muitas outras coisas, mas sem abrir mão da música. A minha formação era complemente diferente, quer dizer, eu fiz parte de uma escola em que se buscava esse cuidado formal ao máximo: as melhores harmonias, a melhor melodia, o caminho harmônico, a letra bonita... Agora, se o sujeito dirige essa coisa toda para a atuação política e fala de outras coisas, então que fale bonito, harmonize bonito, cante bonito e faça boas melodias.
Não precisa ser aquela coisa pobre, mal gravada. Mas isso foi um período, uma moda que felizmente passou. Com relação a isso, eu nem me refiro aos compositores brasileiros, mas a uma ala intelectual brasileira que só valorizava as canções políticas, em que a letra era mais importante do que a música.
Eu vi muitos compositores franceses, belgas, espanhóis, portugueses, que tinham essa concepção estética: a letra é que é importante, é o que vale; a música é de importância secundária.
Era uma ala intelectual mais xiita, mais barra pesada. A gente começava a discutir isso um bocado e eu ficava sem compreender essa paixão que eu não conseguia ter. Eu não conseguia ter uma emoção completa, porque a letra podia me emocionar - era uma belíssima letra, tinha uma importância literária e política -, mas ficava faltando a música. Por quê é que a canção revolucionária tem que ser pobre? Se ela tem esse compromisso, mais rica ainda ela tem que ser.



Santuza: As letras das suas composições também são muito bem elaboradas, não têm nada de panflet*rio. Você trabalha com temas regionais...


Edu: Pois é, mas também é por causa disso, por causa do Arena conta Zumbi, do "Upa, neguinho", veio o rótulo de compositor de protesto. O "Bob Dylan brasileiro". Inclusive, musicalmente, a formação era outra, completamente diferente.


HeloHeloísa: Mas eu acho que a gente precisava muito disso naquele momento, porque a gente vinha da bossa nova, que tinha uma temática lírica; então a gente precisava desse momento que veio com essa geração.


Edu: Eu sei, mas sem valorizar só a posição política em detrimento da qualidade musical, é isso que eu estou dizendo. Isso é que era muito confuso. Então, é só lembrar, por exemplo, um fato que aconteceu: a canção "Sabiá", do Chico e Tom, foi vaiada no Maracanãzinho, e a canção do [Geraldo] Vandré, "Caminhando", que foi a preferida, aplaudidíssima. E o tempo provou como o público estava completamente equivocado, sem querer comparar uma música com a outra. No festival, o grande erro é que uma música elaboradíssima e lentíssima jamais vai convencer uma platéia que está urrando, aplaudindo, vaiando, mas prestando pouca atenção às nuances, aos detalhes, à qualidade das canções.


Santuza: Você se referiu antes à censura de hoje em dia, que é a do mercado.


Edu: A censura do mercado. Parece um pouco com a época do Stalinismo em que a arte era controlada totalmente, o que não era considerado popular era descartado, censurado.Era o que se chamava de "realismo socialista". O que era muito moderno, era considerado formalismo burguês decrépito A diferença é que as razões da indústria de agora não resultam de nenhuma ideologia: é tão sòmente uma corrida desvairada atrás do lucro, do dinheiro, sem nenhum critério. A indústria do disco é o Stalinismo do sec XXI.
Mas eu prefiro achar que se uma música fôr muito bem feita, ela acaba chegando às pessoas. De um jeito ou de outro, em alguma hora ela chega.



Santuza: Quando eu quero comprar um CD seu ou de outros músicos da sua geração, eu só acho na Modern Sound.


Silvio: E como é que você vê esse momento em que a bossa nova teria se transformado? Nesse momento de afirmação da sua geração, em que a bossa nova já não era mais aquela bossa nova do início e coincide com uma certa massificação. Acho que a indústria cultural se estabelece de forma mais definida no Brasil, os festivais começam a acontecer depois do golpe de 1964. Como é que você vê esse panorama, que foi o momento da afirmação da sua produção musical?


Edu: Eu acho que houve uma transformação assim: no início da bossa nova, era uma música feita em apartamento, mais intimista, as letras puxavam mais para esse lado, o canto era todo assim. E depois, acho que com a minha geração, até por necessidade de todo mundo também aparecer, ela foi indo para os teatros, havia um envolvimento do público muito grande com as canções. Quer dizer, na época da política, eram os estudantes que iam assistir aos shows e então essa música começou a ser feita para um canto mais projetado. Foi na época que apareceu a Elis Regina. Elis Regina não tem nada a ver com as cantoras da época da bossa nova, nada a ver com a Nara, nada a ver mesmo com a Maysa, que tinha um vozeirão maior, mas ainda era uma coisa mais cool.
Essa atmosfera efervescente acabou gerando os festivais de música, as disputas, as brigas, as vaias. E as televisões faturando em cima disso tudo.



Kate: Mas tem uma coisa interessante que aconteceu nos Estados Unidos até um certo ponto, mas não sei se aconteceria aqui. O que aconteceu nos Estados Unidos foi que muitas pessoas deixaram de ouvir rádio, porque ninguém queria ouvir aquela coisa já pré-programada, queria ouvir outras coisas. E os independentes começaram a achar uma maneira de você alcançar o ouvinte. Tem cem gravadoras independentes nos Estados Unidos que conseguem sobreviver. Uma delas que cresceu muito foi a Wyndham Hill. No mundo você tem de 6 a 8 gravadoras, mais ou menos isso, grandes gravadoras. Você tem a Polygram, você tem a Sony ...


Edu: E que vão se misturando, agora vão se juntando. Esse disco da Lani Hall não é da Wyndham Hill?


Kate: É. Bom, a Wyndham Hill gravou os Gipsy Kings, quando todas as grandes gravadoras falaram: "É muito latino, ninguém vai querer isso". Eles gravaram, como gravaram grandes coisas do jazz, e eles cresceram tanto que foram comprados nem sei por quem.


Edu: A diferença que eu percebo dessa época de agora para os anos 60, e até 70, é que interessava muito a qualquer gravadora, mesmo a gravadoras grandes, um nome de prestígio. Interessava para a gravadora, porque era uma coisa boa e que nunca deuprejuízo, porque sempre um nome de prestígio vai vender uma quantidade de discos que vai fazer com que haja retôrno financeiro. Mas hoje em dia não está interessando mais.. Então você vê vários exemplos de grandes artistas optando por gravadoras menores, para poder ter maior liberdade. E é estranho, porque não tem muita lógica, não faz sentido. É como se fosse a procura de uma estética única, quando na verdade não existe estética nenhuma, mas opção única: estratégia de mercado. Então nesse, vamos investir tudo nisso; o ano que vem vamos investir tudo naquilo. Eu não entendo disso, eu não tenho nenhum talento comercial para nada, nem sensibilidade para isso. Sempre houve artistas que têm uma música mais popular, mais simples, mas que são grandes vendedores e que, inclusive, têm uma função ótima de fazer com que supostos"maus vendedores" com prestígio, possam ser contratados. E valorizar a criação de um catálogo projetado para o futuro.Em qualquer boa loja de discos do mundo você encontra discografias completas de artistas não tão populares.


Santuza: Dava para contrabalançar, não é?


Edu: É. E as pessoas eram contratadas em início de carreira, porque havia uma perspectiva artística, uma expectativa de se estar investindo num futuro grande artista. Agora, isso tudo é para dizer que eu não entendo nada disso. Nada disso.


Kay: E sempre aparece esse argumento de que é música do povo, mas não é verdade. Cartola era do povo e ele fazia música super bem.


Edu: É, mas hoje em dia ele se tornou um compositor sofisticadíssimo; dentro do padrão que existe do samba comercial, Cartola está mais para um Villa-Lobos.


Santuza: Agora, eu tenho a impressão de que mesmo que a bossa nova tenha te influenciando muito, você é bem representativo da postura de vários músicos da sua geração, que é a de incorporar elementos da bossa nova e ao mesmo tempo romper, de uma certa forma, com o padrão intimista inaugurado por João Gilberto. A minha tendência é tentar diferenciar, por exemplo, o Tom Jobim do João Gilberto. Os dois são maravilhosos, mas eu acho que são muito diferentes e a minha impressão é que você tem mais a ver com essa tradição do Tom, que é uma tradição mais da exuberância. João Gilberto é mais chegado à ruptura do que o Tom Jobim, por exemplo. É como se o João Gilberto projetasse romper com várias tradições e incorporar uma determinada tradição, como o samba, e estilizar esse samba, enquanto o Tom já é mais dado à incorporação...


Edu: Não sei se é mais, acho que é diferente. Agora, por exemplo, o João pegava uma canção antiquíssima (cantarola): "Aos pés da Santa Cruz..." E quando ele cantava, era bossa nova.


Santuza: Ele transforma tudo em bossa nova.


Edu: Mas eles são diferentes. Um é compositor, é o cara que fez as músicas todas, que mexeu em todas. Eu acho que eles se complementam. Eles se complementam, mas eles são diferentes. O Tom não é um cantor que tenha mudado a história do canto, quem fez isso foi o João. O Tom tinha um piano que ninguém tocava e o João tinha um violão que ninguém tocava e os dois, quando se misturaram, foi tudo de bom. E os arranjos também, as orquestrações do Tom, a maneira de escrever, é o minimalismo da melhor maneira possível.


Santuza: Por quê minimalismo?


Edu: Minimalismo na verdade, é uma escola que não me interessa muito. Eu digo minimalismo no bom sentido, porque é uma maneira de improvisar, utilizando um número menor de notas. Ah, e tem aquela história que virou meio piada, mas que é verdadeira, sobre alguém que perguntou por que o Tom tocava poucas notas quando ele improvisava, e um sujeito respondeu: "Porque ele escolhe as melhores". (risos) Porque o oposto é aquele grande pianista técnico, que sabe tudo,que toca notas demais, faz malabarismos no piano. Então o estilo do Tom era novo, mais conciso e inteligente. É por isso que eu chamo de minimalista "no bom sentido", porque essa escola atual, esse minimalismo não me interessa muito não, que é muito mais um de estilo que abusa da repetição de acordes, de escalas. Um grande exemplo do melhor tipo de minimalismo "no bom sentido" seria o Bolero de Ravel, onde a repetição de dois temas é levada ao extremo só que contrabalançada pela incrível variação dos timbres, das combinações dos instrumentos.


Santuza: A Laurie Anderson, essa corrente norte-americana...


Edu: Não, mesmo o Philip Glass, que eu sei que estudou muito, mas que eu, pessoalmente, não tenho muita vontade de ouvir, porque eles usam exatamente o contrário do que eu gosto na música, que é a variação. Eles ficam obsessivos com a coisa da repetição, daqueles acordes e arpejos que se repetem ao infinito.


Santuza: Mas eu estava pensando em diferenciar o Tom do João Gilberto em um outro sentido, embora eu ache também que eles se complementam. É só no sentido de que o João Gilberto tem uma sensibilidade mais camerística e o Tom Jobim mais sinfônica.


Edu: Mais sinfônica depois, mas no começo não.


Santuza: Mas, antes da bossa nova, ele já não fazia grandes sinfonias, como a "Sinfonia do Rio de Janeiro"?


Edu: É. A "Sinfonia do Rio de Janeiro", que é uma sinfonia de canções, e depois a "Sinfonia de Brasília", que é instrumental mesmo, já em um outro plano. Mas nesses discos do João o Tom era complementar, com aquele piano e com aquele tipo de arranjo, de orquestração. Eu acho difícil comparar os dois, eu acho que eles se completam realmente. Mas eles têm profissões diferentes: um é um compositor por excelência, que é o Tom...


Santuza: E arranjador.


Edu: Arranjador... E o João não é exatamente compositor; enfim, fez algumas músicas, mas não é o principal trabalho dele. O João é mais do que um intérprete, eu não sei, é difícil julgar o João, quer dizer, analisar o que o João faz, porque é o canto misturado com o violão. Você não separa o violão do canto.


Heloisa: É aquilo que a Wanda Sá fala, na entrevista, que é uma outra categoria: é o que canta e toca. Não é o que só canta ou só toca, que já está com a harmonia...


Edu: E quando ele canta e toca, é como se fosse um terceiro som que ele faz, porque ele canta junto com o violão e ele divide de um jeito que, se você tirar o violão dele, ele não vai poder cantar desta maneira. Mas se você analisar a obra do Tom, por exemplo, você vê a transformação do Tom de 1958 para os anos oitenta e noventa. A música foi se transformando o tempo inteiro. "Matita Perê" não tem nada a ver com "Desafinado". Você vê que é o mesmo compositor, mas que, com o passar do tempo, se desenvolveu, percorreu um caminho longo, imenso , até chegar cada vez mais perto do Villa-Lobos, da música mais ampla, mais brasileirona.