quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE XIX: O BRASIL DE TODOS OS SONS

Santuza: Você não acha que o Tom tem um influência fortíssima do Radamés Gnattali?


Edu: Com certeza.


Santuza: Então você chegou naquele ponto que eu estava pensando, isto é, numa árvore genealógica que de certa forma começa com Villa-Lobos, passa por Radamés, Tom... Eu acho que você dá continuidade a essa tradição, porque a sua música me passa a idéia de pujança, de exuberância muito forte.


Edu: Espero muito que sim. Que essa música que eu faço tenha muito a ver com o Brasil. Com uma sonoridade brasileira.


Santuza: Mas, você também, como compositor, conseguiu fazer uma estética muito original. E me interessa muito isso esse seu procedimento de buscar textos musicais em Recife, por exemplo, como uma maneira de recriar, de fazer uma coisa nova. Eu queria saber sobre a sua a maneira de lidar com esses textos musicais legados pela tradição. Essa discussão me interessa, porque eu estou estudando os músicos da sua geração e a impressão que eu tenho é que vocês dão continuidade a um certo gesto modernista, que começa com Villa-Lobos, de trabalhar os textos legados pela tradição, mas no sentido de recriar esses textos. Entre os músicos de sua geração você é mais músico, não é? Quer dizer, você é muito mais músico do que cancionista, pelo menos na minha opinião...


Edu: Músico em um sentido de compositor, porque eu não sou um músico instrumentista, eu não elaborei isso.


Santuza: No sentido de compositor, de elaborar melodias com harmonias sofisticadas. E me parece que você tem esse gesto modernista e eu queria que você me falasse um pouco sobre isso, sobre esse gesto de incorporar textos legado pela tradição e de recriar esses textos. Isso me lembra muito também o Radamés [Gnattali], que tem uma formação erudita e acaba fazendo música popular. E continuou fazendo as duas coisas e sempre trabalhando com texto legado pela tradição, recriando.


Edu: E profundamente interessado no Brasil.


Santuza: Profundamente. E o que me passa muito na estética de vocês, na sua música, é uma representação de Brasil como um país pujante em termos culturais e naturais. Queria que você falasse sobre isso.


Edu: Eu acho isso. Eu acho que essa escolha não só do Villa e do Radamés [Gnattali], e de outras pessoas da música popular que fizeram isso, não é nem por uma questão de nacionalismo, não é uma coisa de ufanismo brasileiro. Eu acho que é exatamente por perceber que a gente está em um país muito rico e que não há necessidade de pegar emprestado nada de fora. O Brasil é um país extraordinariamente rico musicalmente. Agora, nessa época, quando eu estava fazendo essas experiências, eu tinha muito pouco contato com a música do Villa, eu estava começando a conhece-lo. Por isso é que eu estava dizendo que não foi de forma consciente a idéia de partir de uma coisa da tradição.
Stravinsky fala que tradição é uma coisa muito mais forte do que hábito. Hábito é uma coisa que você adquire de uma forma inconsciente; a tradição não, a tradição você decide, você percebe que vale a pena e que tem tudo a ver, que vai informar. Ele diz que a tradição é uma coisa do passado, mas que forma o presente e cria o futuro. Eu acho que eu fiz isso de forma inconsciente.
Depois é que eu fui me interessar muito pelo Villa e fui perceber que o caminho é realmente esse, que é dos mais ricos, porque você tem aqui, você tem a habilidade de fazer, você compreende isso que é feito aqui, você compreende instintivamente. Você tem os elementos principais, você tem o suingue. O suingue você não ensina, ou você tem ou não tem. O suingue brasileiro específico, a escala nordestina, o jeito que se toca um xaxado ou um baião, é impossível você fazer um estrangeiro reproduzir isso, não há jeito, por melhor que ele seja.
Eu tive experiências na minha vida desastrosas com orquestras estrangeiras.. Por mais que você escreva corretamente, tem uma coisa que um músico tem ou ele não tem, e se ele não tem, ele não compreende. Porque a escrita musical, por incrível que pareça é limitada, o suingue que voçê deseja não está nas partituras, e sim no coração dos músicos, no sangue.



Santuza: Eu queria que você me falasse mais um pouco sobre o Villa-Lobos. Você admitiu, no início da entrevista, uma influência do Villa em suas composições. Você disse que o Villa marcou não só a sua obra, como inclusive a bossa nova, que teria incorporado a alma do Villa.


Edu: Com certeza.


Santuza: Quando foi que você descobriu o Villa-Lobos?


Edu: Eu acho que nessa época: 63, 64, em que as pessoas ouviam muito as Bachianas. Era o que mais se ouvia do Villa. Tem as Bachianas no "Deus e o Diabo" do Glauber. Não me lembro exatamente, mas grande parte do filme tem as Bachianas, não é? Então foi uma paixão mesmo que começou. Bom, eu já tinha contato com o Tom, que era alucinado por Villa. E aí começou quase que um trabalho de garimpo, destes 35 anos para cá, comprando todas as partituras, quase todas fora do Brasil. Até existir o museu Villa-Lobos, onde existem as partituras, onde você pode fazer xerox, você tinha que viajar para comprar não só as partituras como os discos do Villa. Porque entra aí o Brasil com as suas indelicadezas, são coisas inacreditáveis... Se você chega nos Estados Unidos, você tem tudo, de todo o mundo, qualquer coisa. Musical da Broadway, você tem a partitura inteira se você quiser. Estou falando de um bom musical da Broadway: tem lá o libreto inteirinho, com todas as harmonias.


Santuza: Mas que tipo de influência você acha que o Villa exerceu sobre você?


Edu: Total. Se eu fosse comparar o Villa com alguém... Tem compositores pelos quais eu tenho a maior admiração, mas é como se fosse assim num exemplo que vai parecer grosseiro, mas não é... Você admira um compositor como se fosse uma bela casa , mas percebe que é um lugar onde você jamais moraria. Villa-Lobos é a casa em que eu moraria.


Santuza: Você se sente em casa. (risos)


Edu: Então, por exemplo, quando eu observo o Stravinsky, que é uma paixão da minha vida também, eu o observo como uma casa difícil para mim, para se contemplar de longe, onde eu não teria conforto. Mas é claro que o defeito não é da casa e sim do morador.O Villa-Lobos me traz todas as lembranças, com as Cirandas, que estão todas na minha cabeça. O que ele fez com essa canções populares, aí é uma outra história. É realmente uma recomposição. Ele dá essa indicação do que fazer com a música brasileira, de como ser brasileiro da melhor maneira possível e sendo absolutamente universal.


Santuza: E original, também?


Edu: Original exatamente por isso, porque é uma linguagem que ninguém tem no mundo, você tem que ser um brasileiro para fazer isso. O que eu sinto muito, quando eu ouço o Villa - voltando àquela história do suingue -, é que o Villa, como tem essa alma popular fortíssima, que é também das grandes riquezas da obra dele, dependendo da orquestra ,isso se perde um pouco. Você ouve o Trenzinho caipira com uma orquestra alemã, ou com uma orquestra francesa... Há um suingue no Trenzinho, fundamental, e tem aquele percussionista que lê: "Vec, funf, trunf, caf, trunf". Lê certo,como está escrito, mas falta a ginga, o jôgo de corpo.Tem que ter um sangue meio negro, ou de índio, uma coisa do Brasil. Está tudo lá no Villa. Acho que Villa-Lobos é o melhor caminho para a música brasileira. Eu falo isso não só para a música erudita não, mas para a música brasileira em geral: popular, médio-popular, o que você quiser chamar de música com todos os nomes.


Santuza: E parece que ele influenciou muito e continua influenciando até hoje a música popular, não é?


Edu: O tempo inteiro, o tempo inteiro.