quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE XI: AS PARCERIAS

Edu, Gal Costa e Chico Buarque


Santuza: Eu queria que você falasse um pouco agora sobre o seu processo de composição, já que você entrou na questão do piano, do violão, nas duas maneiras diferentes de compor. Até porque você atua também como cancionista. Você faz muita parceria e os parceiros são letristas, enquanto que você geralmente faz música.


Edu: Geralmente não, sempre.


Santuza: Você acabou desenvolvendo muito o trabalho em parceria. Você é muito mais músico, não é ?


Edu: Eu sempre faço a música.


HeloHeloísa: Mas você tem letras suas.


Edu: Pouquíssimas. O primeiro parceiro que eu tive na minha vida foi o Vinicius. Antes eu fazia umas coisas sozinho,letra e música, que eram meio amadoras. E eu fiz uma música com ele exatamente na noite em que eu o conheci. E daí em diante fui conhecendo as outras pessoas e comecei a fazer mais canções com o Vinicius e depois com o Ruy Guerra, depois com o Guarnieri, com o Vianinha. Algum tempo depois muita coisa com o [José Carlos] Capinam, com o Torquato Neto, Paulinho Pinheiro, o Cacaso, a Joyce, o Ronaldo bastos, o Aldir Blanc. E até uma parceria longa que eu tenho com o Chico [Buarque], sempre meio em função de projetos grandes. Mas aí já deu mais de quarenta músicas nessa brincadeira toda. Parceria que se chama de "parceria com patrão".


Santuza: Como assim (risos)?


Edu: Porque sempre tem um patrão. Sempre tem alguém que encomenda.


Juliana: Você falou que, na maioria das vezes, quando você trabalha em parceria, você primeiro tem a música, você faz a música e as pessoas colocam a letra em cima. Mas você disse que algumas vezes isso não aconteceu. Quer dizer, te deram a letra e você teve que botar a música em cima. Como é que é esse processo?


Edu: Eu já musiquei poemas, já musiquei Fernando Pessoa, alguma coisa que o Capinam mandou eu musiquei. Mas como eu gosto de trabalhar fazendo a canção primeiro, a música, fazendo a melodia com a harmonia pronta e mandar para alguém fazer a letra, essa para mim é a maneira ideal, porque aí é liberdade total.


HeloHeloísa: Mas já aconteceu o contrário?


Edu: Já aconteceu de o Capinan me mandar uma letra pronta, ou um pedaço de letra; o Cacaso também tinhas umas letras prontas que eu musicava uma ou outra coisa, às vezes mexia um pouco. Mas, se eu pudesse escolher a maneira ideal mesmo de fazer uma música, seria dentro de um musical, onde eu já tenho o mote, como assim: a personagem chama-se Beatriz; ela tem um rosto,um corpo, se move de um jeito,fala de uma certa maneira,é preciso fazer uma canção lírica , uma canção apaixonada, ela representa isso na peça. Daí eu já tenho a história, eu vou compor para um filme que eu já estou vendo. Mas aí é o seguinte: existem poemas que são musicáveis e outros que não são; da mesma forma há canções que pedem letras ,outras que não . Tem poetas sonoros e poetas sem som. O Vinicius, claro, nem é preciso falar. O [Carlos] Drummond é um poeta sonoro, o [Manuel] Bandeira é um poeta que inspira música Mas o [João] Cabral é árido seco. É um poeta que eu adoro, um dos maiores poetas brasileiros, mas quando leio João Cabral não ouço música nos seus versos. Ouço vento, ouço tempestade, ouço até o silêncio. Mas nunca música.


HeloHeloísa: Você musicou o Fernando Pessoa, não é?


Edu: Musiquei.


HeloHeloísa: Fernando Pessoa é musicável?


Edu: É, dependendo do poema.


Juliana: E você muda as palavras, quando elas não têm musicalidade nenhuma?


Edu: Dos poemas dos poetas que já morreram, nunca. Nem poderia. Mas nos poemas dos vivos às vezes você muda, é lógico. Por causa da frase musical que demanda um certo tipo de som das palavras. Como eu já disse, eu penso que as boas melodias contém letras codificadas: é preciso que um grande letrista revele com as suas palavras, o que essas melodias estão querendo dizer. A história do gato do T.S. Elliot.


Kate: Mas também muitas vezes você tira a letra da música e ela não se sustenta sozinha. A letra, dentro do contexto da música, é uma coisa fortíssima, mas se tira fora parece uma bobagem.


Edu: Ah, sim, exatamente. De qualquer forma, o que eu quero dizer é que mesmo nos melhores letristas, essas letras não foram feitas para serem lidas, mas para serem cantadas. É uma outra especialização.


Santuza: Não só a melodia, mas também o arranjo, não é?


Edu: Lógico. O arranjo pode, inclusive, completar ou destruir tudo o que está sendo feito. E tem uns arranjadores que" interpretam" o que está sendo dito. Bem, aí fica horrível.


Santuza: Você tem aquela parceria grande com o Chico, que é O Grande Circo Místico.


Edu: Essa é a primeira grande parceria, depois vieram outros projetos grandes: Dança da meia-lua e Corsário do rei, que foi um musical do Augusto Boal.


Santuza: Você acha que esses parceiros tiveram alguma influência sobre você?


Edu: Ah, sempre tem. E eu mexo muito na música em função da letra, quer dizer, a letra às vezes me faz trocar muitas notas; então a letra sempre tem uma interferência muito grande no que eu estou fazendo. E o que eles falam também tem: uma opinião, ou o gosto.... O ideal é que alguém faça uma letra em cima da música pronta, mas cada um tem o seu jeito. Cada parceiro tem um jeito de trabalhar. Tem uns que trabalham com você, outros que você não vê nunca. O Chico, por exemplo, eu nunca vi trabalhando, nem uma palavra. Nunca o vi com uma caneta na mão. Ele se isola e manda por fax. Eu entrego a música e ele manda a letra pronta, absolutamente pronta. As possibilidades de mudança vêm num "p.s.".


Santuza: Mas é um diálogo, não é? Nem que seja por fax (risos).


Edu: Sim, mas eu estou dizendo é que é o jeito de cada um trabalhar. O Vinicius,pelo menos comigo, fazia a letra me ouvindo tocar, não gostava de gravador.


Santuza: Mas não há sempre tem uma negociação nesse tipo de parceria?


Edu: Ah, lógico. E um aprendizado enorme. Principalmente alguns parceiros que eu tenho, e tive, que também fazem música. Aí é melhor ainda, porque o cara tem idéias musicais também, então interfere mais ainda no que você está fazendo, quer dizer, no bom sentido, não é?Porque é alguém que está de fora e que tem uma visão melhor do que você, que está muito envolvido com aquela canção. Eu gosto de parceria, aliás, em todas as coisas. Arranjo, por exemplo. Eu estudei orquestração, mas eu gosto de trabalhar sempre com um músico ,orquestrando comigo. Porque daí as idéias fluem melhor, é mais rico o trabalho.


Santuza: Agora eu queria que você me falasse dos seus parceiros mais constantes.


Edu: Parceiros mais constantes? Bom, Vinicius, não é? Eu não fiz tantas canções assim com o Vinicius, mas ele tem uma importância fundamental na minha vida. Depois, em seguida, fiz algumas canções com o Ruy Guerra, muitas com o Capinam, pouquíssimas com Torquato Neto, infelizmente, mas tem o Pra dizer adeus. Deixa eu ver na ordem, para não esquecer ninguém: Vinicius, Ruy Guerra, Lula Freire, e em seguida, [Gianfrancesco] Guarnieri que foi o meu parceiro de teatro... Depois do Guarnieri, Capinam, Torquato, que foi na época do pessoal da Bahia, época em que conheci Caetano, Gil, e depois Cacaso [Antonio Carlos de Brito], com quem eu fiz muitas coisas. Algumas poucas letras com o Ronaldo Bastos, a Joyce, com o Paulinho Pinheiro, o Aldir Blanc,e depois um trabalho muito grande com o Chico, nesses musicais. Eu chamo de musicais, mas na verdade eram balés para o Guaíra, mas balés com canções. Então tem o Grande Circo Místico e a Dança da meia-lua e o musical do Boal, que foi O corsário do rei. Umas quarenta canções. E teve mais uma peça do Dias Gomes sobre o Vargas, acho que se chamava Vargas mesmo; tem uma canção-tema. Enfim, eu acho que hoje em dia Chico é o parceiro com quem eu mais fiz música.


Santuza: Os processos de composição da canção e da música instrumental são muito diferentes?


Edu: Não acho não. Principalmente quando você tem um parceiro em que você confia plenamente, você faz com total liberdade . Se a música está complicada, ele vai resolver o problema, e você sabe que você não vai ter que adaptar nada para facilitar coisa nenhuma. E na música instrumental também, você compõe livremente. A única diferença é que na música instrumental - embora eu não diga que seja um processo mais livre - você não se preocupa se isso é cantável ou não. Se você quiser fazer uma extensão brutal de seis oitavas, você faz. Mas eu não sou essencialmente um compositor de música instrumental. Eu andei fazendo umas coisas em Los Angeles por ausência de parceiro, como "Casa Forte" e "Zanzibar", que são canções para serem cantadas sem letras. Elas não têm que ter letra; elas têm que ter canto sem palavras, elas foram feitas para isso, para terem uma voz dobrando ou em contraponto com um instrumento qualquer.