quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE XII: O MITO DA "INSPIRAÇÃO"

Santuza: Explorando outros aspectos do processo de composição, o que te leva a compor?


Edu: Eu acho que eu tenho dificuldade de compor sem motivo, quer dizer, sem mote, eu sou meio ruim nisso. Eu acho que é uma limitação que eu tenho, eu brigo muito com isso. Se eu tiver três projetos, eu produzo alucinadamente. Agora, se não tiver, é uma espécie de preguiça que se estabelece, eu passo a ser ouvinte, me distraio. Tem uma história do Cole Porter que é engraçada. Teriam perguntado a ele: "Como é que o senhor compõe? O senhor vai para a sua casa não sei onde e aí tem que estar tudo em silêncio às três da manhã, o que é que coloca o senhor in motion?" Ele respondeu: "A call from the producer." (risos) E é assim também comigo: o telefonema quebra a preguiça, a letargia.Uma outra história que desconstroi um pouco essa mitificação que se faz da criação musical é uma do Stravinsky. Ele escreveu uma peça para orquestra de cordas chamada Apollon Musagetes e um repórter lhe perguntou: "Maestro, o senhor estava pensando na Grécia o tempo inteiro quando estava compondo "Apollon"? Ele respondeu: "Não, meu filho, eu estava pensando na orquestra de cordas". (risos) Eu acho genial isso, porque quebra logo essa coisa mitificada. A pergunta pressupõe que o cara tem que passar o dia inteiro ouvindo música grega ou lendo os livros e entrar em barato grego para poder compor. Não é nada disso, ele está pensando nas cordas, é verdade, é isso aí mesmo.


Santuza: Uma atitude clássica.


Edu: É, nessa atitude de artesão, do sujeito que trabalha com objetos, que encaixa,corta,dobra,raspa,pinta: é um trabalho de especulação. Qualquer trabalho artístico é trabalho de especulação. O Stravinsky fala um negócio interessantíssimo sobre o acidente, que o acidente pode ser extremamente inspirador: você escorregou a nota no piano, errou, tocou outra e descobriu que o suposto êrro era um grande acêrto. Porque o cérebro está ligado, e se você estiver ligado.... É, se fala muito nesse negócio de inteligência dos dedos, que os dedos têm uma inteligência própria, que às vezes é melhor deixar que eles descubram as notas... Não sei. Eu acredito nisso, nesse acidente que você seleciona na hora e o transforma na coisa melhor. Eu acho isso, eu gosto de pensar desta forma, que o meu trabalho não é nada além de um artesanato e que pode ficar melhor a cada dia, para mim e para os outros.
Mas para mim é exatamente assim. Quanto existe o mote, eu começo já a pensar e tenho idéia da música, tenho vontade de sentar no piano, parece que as idéias todas começam a brotar. E tem a data de entrega, então eu não durmo direito. Aí a gente volta à questão da inspiração. Não é que ela não exista, mas ela não existe desta forma mística que as pessoas atribuem. Você está no meio da rua e é tomado por uma coisa, você tem uma melodia inteira na cabeça, sai correndo, vai para casa,para o piano... Isso nunca me aconteceu e eu sempre digo : nunca nenhuma melodia me perseguiu; eu passei a minha vida inteira perseguindo as melodias. Eu acho que existe uma coisa chamada "disposição", que é provocada pelo seu próprio trabalho. Você começa a trabalhar e sente que está alguma coisa rolando e que alguma coisa que você está fazendo te estimula, você percebe que isso vale a pena.
Ultimamente, eu trabalho muito com gravador, componho com o gravador ligado, para poder ouvir depois, julgar de uma forma mais distante. Se você usa o gravador, dias depois você começa a perceber uma porção de coisas interessantes. Você, ao mesmo tempo que compõe, é o seu público naquele momento, e ao mesmo tempo seu próprio crítico. Um crítico feroz, que não quer deixar passar nada e tem uma expectativa de revolucionar a história da música . Então, às vezes, nesses momentos de cobrança excessiva, é bom ligar um gravador e começar a tocar sem compromisso, fazer umas coisinhas, de uma forma quase que distraída. Dois ou três dias depois ,ao escutar o tape, quase sempre tem uma ou outra frase que vale a pena, uma harmonia que você não percebeu na hora, um detalhe qualquer que se revela., uma melodia escondida. Um embrião que depois é possível transformar em música.



Santuza: Eu me lembro de ter ouvido você dizer o seguinte: "Olha, eu não sou um compositor erudito, eu sou um compositor que faz música popular, mas que tem formação técnica." Você disse que havia até um certo preconceito contra a formação técnica, como se ela afetasse a autenticidade da música, a espontaneidade. Eu queria que você me dissesse, a partir daí - já que a gente concordou que a música brasileira é muito rica, por causa dessa flexibilidade toda, da interpenetração das diversas informações -, como é que você vê o desenvolvimento da sua música, desde o início da sua carreira até agora.


Edu: Eu iniciei com músicas em festival. O fato de ter vencido um festival foi importante, não exatamente por causa da música que venceu o festival, mas pela possibilidade mostrar as outras. Era nisso em que eu estava interessado, porque uma música só não resolve o problema. Evidentemente que quando você fica meio exposto, as pessoas prestam atenção nas outras músicas. Mas depois, sei lá, desses 4, 5 anos de profissão, coisa meio rápida demais, sem eu saber direito o que é que estava acontecendo, eu acho que eu tive a necessidade mesmo de dar uma parada na minha vida. E tive necessidade absoluta de estudar, isto é, de ter controle sobre o meu trabalho. Eu precisava saber o que é que eu fazia, compreender meu proprio processo criativo. E eu achava que eu correria riscos se ficasse somente produzindo. E talvez tenha sido uma intuição, ou uma premonição, de que o rádio não ia ser sempre democrático como o da minha época, que um dia isso ia mudar, que as músicas não iam tocar da mesma maneira.
Então era preciso que eu tivesse controle até para poder fazer um outro tipo de coisa, poder escrever para orquestra, poder saber o que era uma orquestra, poder trabalhar em filmes e teatro, uma coisa da qual eu estava sentindo necessidade. Eu me lembro de um fato que foi muito significativo para mim, a primeira vez que eu vi West Side story no cinema. Fiquei completamente fascinado pela música. Não só pelas canções com letra, mas pelos instrumentais para as danças, a coreografia do Jerome Robbins... E foi assim um primeiro desejo: escrever música, para o cinema, para o ballet, para o teatro. Eu fiquei impressionadíssimo com a música, toda cheia de quintas diminutas, você tem aquele intervalo estranho (cantarola). As músicas todas têm essa quinta, que em música se chama de diabolus in musica. Chamava-se diabolus na Idade Média, porque essa quinta diminuta era um intervalo proibido. Acho que praticamente todos os temas do west Side Story têm esse intervalo. E depois, curiosamente, eu fui descobrir esse intervalo na escala nordestina, que vem dos mouros, provàvelmente.. Só sei que esse intervalo que me bateu tão forte - quer dizer, já tinha batido antes e eu provavelmente não tinha percebido - já estava na minha cabeça.



Santuza: E também esse desejo de um aperfeiçoamento técnico.