quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE XIII: ESTUDO - ARRANJO, ORQUESTRAÇÃO E RECOMPOSIÇÃO

Edu: É, e aí eu acho que eu também percebi isso: sem aperfeiçoamento técnico fica difícil, porque você tem que saber algumas coisas. Não é que eu ache que em música você tem que estudar tudo, isso eu não acho mesmo.


Santuza: Você estudou música nos Estados Unidos?


Edu: Eu fui estudar em Los Angeles e tive aulas particulares com um inglês chamado Albert Harris. Eu estudei com ele dois anos e, enfim, tudo que eu tinha de saber sôbre a orquestra. Eu estudei orquestração, foi a única coisa que eu estudei. E depois fiquei aqui escrevendo para teatro,cinema, até descobrir que a melhor maneira de escrever é tendo alguma outra pessoa comigo. Acho que é ideal, porque eu sei o que eu quero. Eu me lembro que no começo da minha carreira me afligia muito a impossibilidade de fazer o que eu queria. Eu trabalhava muito com o Luizinho Eça e eu não sabia o que dizer. Usava termos não especializados para dar uma idéia do que eu queria. Era falta mesmo de linguagem para poder me expressar. E aí eu acho que com o acesso ao estudo de orquestração tudo ficou mais simples: quer dizer, eu sei exatamente o que eu quero, qual é o instrumento que eu acho que vai soar bem, escrevo alguns trechos, sou um co-orquestrador. Mas tem sempre alguém me dando uma informação nova, diferente, que eu acho fundamental.
E a partir desse estudo, aprendi a ler partitura. E comecei a criar esse hábito já em Los Angeles. E me habituei a ouvir música acompanhando com a partitura. Eu acho que esse hábito nem tem muito a ver com a minha vida de compositor. Quer dizer, eu não fico estudando para utilizar o que eu estou ouvindo. É um prazer estético mesmo de você poder compreender o que você esta ouvindo, porque são muitas notas, são muitos instrumentos tocando. Se você tem esse código, você pode decifrar e parar uma hora e conferir no piano o que você está ouvindo e perceber exatamente o que o compositor está querendo dizer, a forma pela qual ele escreve, de que jeito ele combina os instrumentos. É lógico que é um grande barato. Ao contrário do que se diz , não é nenhum mistério, é facílimo de se aprender, não tem dificuldade nenhuma. Agora, essas coisas todas, no Brasil, ficam parecendo coisas do outro mundo e não são. Por exemplo, com a experiência que eu tenho de estúdio de gravação, eu vejo que são raríssimos os engenheiros de som, fora daqui, que não lêem uma grade,uma partitura de orquestra. Porque que tem que ler? Principalmente quem grava formações grandes de instrumentos. Está lá: depois de 14 compassos de um solo de flauta, entram tubas trombones e trompas em fortíssimo. É preciso que êle saiba o momento certo dessa mudança radical de dinâmica para que movimente com segurança os faders , que controlam os volumes ,etc. Então é logico e mais natural que êle trabalhe com a partitura na frente.
Aqui é preciso fazer de cor, contar com o ouvido, porque existe essa idéia de que estudar música é uma coisa muito difícil,desnecessária, que música depende só de talento e intuição, não é para ser estudada..E você começa a perceber essa riqueza, a maravilha que é a arte da orquestração. Aí você compara Quadros de uma exposição do Mussorgski, por exemplo, tocada em piano, com a versão orquestrada pelo Ravel e é espantoso, porque é o Mussorgsky, não tem uma nota trocada, absolutamente nada, tudo igual, só que tem o som do Ravel. Quer dizer, o som de orquestra do Ravel, o som do orquestrador. O orquestrador que é dono de um som.



Santuza: É interessante, porque o que você está dizendo é que o orquestrador de uma certa forma recria a composição.


Edu: Com certeza, é um trabalho de composição,ou de recomposição, para o bem ou para o mal, dependendo do talento dele. Ele pode destruir uma peça, uma obra, uma canção; agora, se ele for um grande orquestrador... Eu acho que é uma parceria, é trabalho autoral mesmo, não é só vestir uma música. É como numa tradução literária. Feita a tradução, você não pode só traduzir literalmente a palavra, você tem que transformar aquilo em outra linguagem, sem trair as intenções do autor.


Santuza: Mas você se considera mais compositor do que orquestrador.


Edu: Eu sou um co-orquestrador.


HeloHeloísa: Você dá a intenção, não é?


Edu: A intenção não só de orquestração, como de arranjo, que são duas coisas completamente diferentes: arranjo é uma coisa, orquestração é outra.


Santuza: Como é que você distingue os dois?


Edu: O arranjador que re-harmoniza, cria contrapontos,refaz introduções. É o que dá forma à canção. Agora, quem veste a canção é o orquestrador, é quem vai acrescentando os instrumentos da orquestra a esta canção. Você pode ter um arranjador genial que não sabe escrever para orquestra. Ele tem o talento de re-harmonizar a música, de criar o andamento perfeito para ela, a melhor introdução, a modulação mais surpreendente... Isso tudo é parte de arranjo, quer dizer, é o trabalho harmônico, o trabalho de base, que é importantíssimo. Depois passa o poder a quem comanda o projeto orquestral - aí é que entra a história do Mussorgsky com o Ravel: trata-se de uma obra para o piano, transformada por um orquestrador - Ravel - que transcreve aquela linguagem que era só pianística para a linguagem de orquestra.


Santuza: O fato de você ter estudado orquestração não tem a ver com um certo perfeccionismo seu, no sentido de entender melhor o que faz e dialogar com os músicos?


Edu: Com certeza. E perfeccionismo também no sentido de poder controlar o meu trabalho e poder optar por uma outra pessoa mais experiente, que vai chegar mais longe. Eu posso ter uma idéia totalmente inusitada, como uma que aconteceu no Circo Místico... Lembra de uma canção que fecha o Circo, o Na Carreira ? Pois é, na introdução eu queria um trem saindo da estação. Eu queria uma coisa meio parecida com que o Villa fez no Trenzinho do Caipira, E tem uma peça sinfônica do Honegger, chamada Pacific e um número que eu não vou lembrar agora, um número de um trem, de uma locomotiva [Pacific 231].
Eu me lembro que eu ficava mostrando isso para o Chiquinho de Moraes aqui em casa e pedia um trem saindo da estação, mas sem nenhum som eletrônico, sem nenhum ruído. A orquestra emulando esses ruídos. Sabe, a máquina ligando, o apito, a fumaça. Quer dizer, eu posso ter a idéia, mas não ter competência para realizar essa idéia, e eu posso ficar horas, meses, e não conseguir fazer exatamente o que projetei. Aí você pega um craque, tipo Chiquinho de Moraes, que faz o que quer com a orquestra, qualquer coisa que você pedir, ele faz. E o trem saiu da estação exatamente do jeito que eu queria. Agora, para isso é preciso ter o vocabulário a gramática, não se pode ficar só sonhando. Eu posso dizer certas coisas: "Os trombones podem fazer isso, uma tuba pode fazer aquilo..." Eu dou as coordenadas todas e atuo junto. Então, para mim foi fundamental estudar e aprender essa linguagem.