quinta-feira, 20 de março de 2008

ABAIXO A BROADWAY

Chico Buarque e Edu Lobo trocam o protesto contra a ditadura pelo combate à americanização

Nos anos 60 e 70, o Brasil viveu uma espécie de era de ouro dos musicais produzidos para o teatro. Primeiro, porque uma dupla de compositores excepcionalmente talentosos – Chico Buarque e Edu Lobo – encabeçava essa tendência. Depois, porque o formato se prestava a uma contingência bem típica daquelas décadas: a de usar alegorias e subterfúgios para discutir temas como política e injustiças sociais, sempre visadíssimos pela censura do regime militar. Dessa combinação nasceram espetáculos que marcaram época, como Roda Viva e Calabar. Passada essa época, o musical de "resistência" mereceu o mesmo destino da canção de protesto: o álbum de memórias. O surgimento de um novo inimigo pode devolver o impulso a esse tipo de espetáculo. Não se está falando mais da censura, claro, mas sim da Broadway. Sim, Broadway. Vamos adiante, sem comentários. Combater a americanização do musical com uma linguagem tipicamente brasileira, seja lá o que isso for, é a ordem por trás de Cambaio, que inicia temporada neste fim de semana no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, sob a grife mais nobre do gênero: justamente Chico Buarque e Edu Lobo, que voltam a compor canções para o teatro pela primeira vez em treze anos, desde A Dança da Meia-Lua.

Cambaio (palavra que significa "cambaleante") vem sendo gestado desde o final de 1999, quando Chico e Edu imaginaram o argumento – um triângulo amoroso formado pelo pop star Cara, pela garota Bela e pelo cambista Rato. O marco zero do projeto foi a canção que dá nome ao espetáculo, composta por Edu Lobo. Ele achou que a música ficaria perfeita na voz de Lenine. Sim, Lenine. Vamos adiante, sem comentários. Pois bem, o compositor foi chamado para colaborar na peça. Bolou os arranjos, que ganharam ares de modernidade, com elementos de hip hop e música eletrônica. "Transpus a música de Chico e Edu para as ruas", diz Lenine. O enredo, por sua vez, já vinha sendo burilado pelo casal Adriana e João Falcão (João também assina a direção da peça), que tem no currículo vários trabalhos elogiados na televisão, como os textos de Comédia da Vida Privada e O Auto da Compadecida, além de uma festejada incursão pelo teatro, A Máquina.

Não há dúvida, contudo, de que o principal chamariz são as sete composições inéditas de Chico e Edu, uma parceria que sempre rendeu coisa boa – vide Grande Circo Místico e O Corsário do Rei, encenados já na década de 80. "A oportunidade de inventar letras e músicas bonitas ainda é nossa maior motivação", diz Edu. Mas o compositor também enfatiza sua preocupação com as tentativas nacionais de macaquear as peças da Broadway. "É como tentar fazer cinema brasileiro repleto de efeitos especiais. Não gosto de espetáculos em que o lustre é mais importante do que a canção."

A escolha dos atores foi um dos momentos mais árduos da produção: mais de 4.000 candidatos se inscreveram para as dezoito vagas. "Deixei pelo menos oitenta talentos de fora", resigna-se o diretor João Falcão. Oitenta talentos?! Humm... Sem comentários. Os eleitos, entre ilustres desconhecidos e alguns donos de sobrenomes famosos (como Isabel Lobo, filha de Edu), foram submetidos a quatro meses de ensaios espartanos, em sessões que chegavam a durar mais de dez horas. Também tiveram de aprender a interpretar todos os papéis. Conclusão (de João Falcão): a trupe toda sabe cantar, dançar, tocar instrumentos de corda e percussão e se equilibrar em pernas de pau (existe um momento acrobático no espetáculo). Mesmo assim, o diretor não se dá por satisfeito. Falcão ainda acha que Cambaio precisa de ajustes. "Só ficará perfeito no último dia da temporada. Podemos melhorá-lo a cada encenação", diz. Sim, perfeito no último dia. Sem comentários.

Será que ainda vale a pena assistir a um musical de Chico Buarque e Edu Lobo? Por certo que sim, principalmente quando se leva em conta a esqualidez do cenário artístico brasileiro. A dupla, embora não esteja na sua melhor forma, ainda sabe combinar letras inspiradas com boas melodias. Veja-se, por exemplo, os versos de Uma Canção Inédita: "Guarde essa canção inédita/ Que num cantinho intocado/ Será para sempre inédita/ Pode tudo consumir/ O tempo que passa feroz/ Mas esta valsa há de deixar para nós". E, sabiamente, os autores evitaram repetir os clichês políticos dos anos 60. "Seria cair no mesmo erro de fazer um festival de música como aqueles dos velhos tempos", resume Edu. Orçado em 1,5 milhão de reais, Cambaio ainda deverá render duas trilhas sonoras. Uma que contará com participações especiais das cantoras Gal Costa e Zizi Possi, além de Lenine. Esse disco começou a ser gravado na segunda-feira 16 e tem previsão de lançamento para julho. A outra será interpretada pelo próprio elenco da peça. Oitenta talentos ficaram de fora do musical... Quem diria que havia tantos assim por aí.

Fonte: http://veja.abril.com.br/250401/p_130.html