quinta-feira, 20 de março de 2008

CASA FORTE - MAURO SENISE


Admirar Edu Lobo não é vantagem: todo instrumentista, sobretudo se íntimo do choro e do jazz, não resiste ao apelo de sua música. Vale lembrar Jacob do Bandolim. Tradicionalista implacável, por mais que trincasse os dentes contra os compositores surgidos nos tempos da bossa nova e dos festivais, ao ouvir Canto triste seria obrigado a trocar o mau humor pela admiração: É uma das coisas mais importantes em matéria de música brasileira. Vantagem é – mais do que admirar com palavras – fazê-lo com gestos, com ação, com música, como fazem Mauro Senise e seus amigos neste Casa forte - Mauro Senise toca Edu Lobo (lançamento Biscoito Fino), disco que já se antecipa como um dos melhores deste 2006 tão positivo em termos de música instrumental.

Sendo ele mesmo íntimo do jazz e do choro, Mauro sempre percebeu nos temas de Edu (a quase totalidade dos quais transformada em canção por nossos melhores letristas) possibilidades instrumentais infinitas. São melodias e harmonias tão ricas, tão feitas de sugestões, que não resistir não basta. É preciso tocá-las. Dessa necessidade nasceu a idéia do projeto.

O primeiro passo foi levar a idéia a Edu. Que não só a recebeu com entusiasmo como se propôs a colaborar com temas inéditos (dois seis que enviou a Mauro, quatro são peças para grande orquestra, de modo que a escolha recaiu sobre os dois que a Mauro pareciam mais adequados a grupos menores, Arpoador e Valsa carioca). O segundo passo, tão importante quanto o primeiro, foi convocar outro grande músico, arranjador, compositor, pianista, parceiro antigo, também íntimo do choro e do jazz, com igual sensibilidade para descobrir novos caminhos em temas alheios: Gilson Peranzzetta.

Assim – Mauro nos saxes e nas flautas, Paulo Russo no contrabaixo, Ivan Mamão Conti na bateria, Gílson no piano e nos arranjos, mais o reforço de ilustres convidados como Jota Moraes no vibrafone, David Chew no cello, Pascoal Perrotta à frente de um naipe de cordas, o próprio Edu na voz da única faixa cantada – o grupo concentrou-se por duas semanas no estúdio da Biscoito Fino para produzir os 70 minutos de música que formam as 13 faixas do disco.

Todo o processo, porém, como Mauro Senise explica, foi mais demorado. Passou por quatro meses de trabalho, incluindo escolha de repertório, concepção e elaboração dos arranjos e, em função disso, a seleção dos músicos. Mauro, que admite não se sentir tão confortável em estúdio quanto no palco (Tocar ao vivo nos permite aquela troca, aquela magia, aquela emoção de conhecer na hora a reação do público...), informa que o repertório foi pensado a partir de temas que funcionassem da mesma forma em disco e em recitais. Preferiu esse critério a ficar apenas com as composições mais conhecidas (Se fosse assim, teríamos um disco exclusivamente de baladas). Por isso, além de baladas obrigatórias (Pra dizer adeus, Beatriz, Canto triste, Canção do amanhecer), no que Edu é mesmo um mestre, o repertório conta também com temas sob medida para instrumentistas como Mauro e seus amigos, por mais importantes que sejam as letras que os transformaram em canções.

O resultado acaba sendo uma requintada homenagem a Edu Lobo e, ao mesmo tempo, dos músicos a eles mesmos. Ouvir o disco ao lado destes é experiência única. São impressionantes a empatia, o entusiasmo, o envolvimento, a integração, o profissionalismo com que eles se entregaram à gravação. E mais: o orgulho com que falam de sua participação numa obra de cujo valor têm plena consciência: É o disco da maturidade, todos tocando juntos, com liberdade, ninguém atrapalhando ninguém, diz Gílson. Paulo Russo e Mamão concordam: tocando com Mauro há muitos anos, em nenhum momento duvidaram de que poderiam contornar a partitura escrita e se aventurar a improvisos próprios. Mauro tem explicação para isso: Nós nos admiramos, e a admiração mútua, em música, produz efeitos fora do alcance obtido por gênios individualistas e ciumentos. Quanto a Edu, tem todos os motivos para dizer amém.

Arpoador - Uma das duas composições inéditas. Antevendo a possibilidade de alguém vir a letrá-la, Edu chegou a pensar em mudar-lhe o título (Para dar mais liberdade ao parceiro letrista...), mas desistiu. Samba-canção abolerado, de desenho sinuoso, acidentado. Depois de decifrarem ao piano a partitura meio apagada que Edu lhes enviara, Mauro e Gilson chegaram ao que é a faixa que abre o disco: mudanças na linha do baixo, acordes invertidos e o sax alto atuando sobre piano, contrabaixo e bateria.

Nego maluco - Um samba mais para gafieira, meio malandro, livre, permitindo à flauta um solo bem suingado. Mauro chama a atenção para a introdução escrita por Gilson: Ela própria já é uma melodia.

Pra dizer adeus - Se a flauta em sol não se lança a improvisos maiores, prendendo-se mais à linha melódica, é o vibrafone de Jota Moraes que empresta a esse clássico do samba-canção moderno um caráter novo, uma certa distinção, de um sofisticado sabor quase oriental.

Vento bravo - O sax soprano, à frente do mesmo quarteto das duas primeiras faixas, imprime o toque talvez mais jazzístico de todo o disco. O vento não era tão bravo assim quando eu fiz, disse Edu numa entrevista. A ousada releitura de Mauro e Gilson para o tema só prova que realmente são infinitas as possibilidades instrumentais das canções do compositor.

Choro bandido - Mauro e Gilson já haviam gravado em duo este que é o mais jobiniano dos temas de Edu Lobo. Aqui, ao sax alto de um e ao piano do outro (ambos em improvisos ausentes na primeira versão), junta-se um elegante naipe de cordas.

Ponteio - Dos primeiros sucessos de Edu, com gravações até no exterior. O curioso é que, embora lançado num festival de canção, cantado pelo próprio, é na verdade, de seus temas de 40 anos atrás, o que mais parece pedir uma leitura instrumental. Talvez por isso Mauro tenha, durante um ensaio, brincado de solá-lo na flauta. Gostando do resultado, decidiu incluí-lo no disco, só que trocando a flauta pelo piccolo. Foi gravado em andamento rápido, de primeira, incluindo solo de contrabaixo.

No cordão da saideira - Os 16 lindos compassos de introdução escritos por Gilson preparam a flauta para o tema. O clima é de frevo, no começo, e de marcha-rancho, mais para o fim, onde o piccolo dobra com a flauta. Uma faixa ágil, ritmada, como se a antecipar o contraste com a qual o tom reflexivo da música seguinte vai nos envolver.

Beatriz - Sax alto, cordas e nada mais Tudo começa com Mauro golpeando a tampa do piano para anunciar a entrada das cordas. Mas logo é ele mesmo quem sola, para dentro do piano, cuja madeira, segundo o técnico de som Gabriel Pinheiro, permite uma reverberação toda especial. É inevitável repetir a história das possibilidades instrumentais da música de Edu Lobo: uma obra-prima da canção brasileira ganha admirável sobrevida sem a letra, de Chico Buarque, que tanto contribuiu para consagrá-la.

História de Lily Braun - Acordes de blues do contrabaixo antecedem o solo de sax alto que faz mais jazzístico esse fox-trot extraído, como Beatriz, da trilha sonora de O grande circo místico. O piano não fica atrás: também sola e depois dialoga jazzisticamente com o sax.

Canto triste - A última faixa a ser gravada, com aprovação geral do segundo take. Grande momento do disco, pela beleza do tema e pelo tratamento que lhe dedica o tocante trio sax alto–cello–piano. David Chew cuida da introdução e de várias intervenções ao longo dos quase cinco minutos da faixa, mas oito dos compassos escritos para ele por Gílson foram substituídos, já no estúdio, a pedido de Mauro, por piano e sax.

Valsa carioca - A outra inédita do disco, feita para o filme Xangô de Baker Street, mas nunca gravada. Também era a intenção de Edu mudar o título, mas fez bem em deixar como está. É valsa e é carioca. Remete-nos ao subúrbio dos anos 50, vida calma, cadeiras na calçada, serestas fora de moda, mas combinando simplicidade & elegância que a tornam atual.

Casa forte - Novamente o quarteto base – flauta, piano, contrabaixo e bateria – na faixa que muito justamente dá título ao disco: é tema que nasceu e tem vivido até hoje como instrumental, sem letra. Mauro e Gilson já o tocaram juntos, muitas vezes, em shows ao vivo, mas a nova versão é muito diferente, menos simples, mais aberta aos solos improvisados, até mesmo de bateria. Tanto que piano e baixo acabam passando por cima do que as respectivas pautas indicavam para entrarem, sem combinação prévia, com seus próprios solos. Estando os quatro músicos tão sintonizados uns com os outros, o resultado é perfeito.

Canção do amanhecer - Fecho primoroso. Como se costuma dizer, de ouro. Edu fez questão de cantar este inspirado tema cujos versos têm a assinatura inconfundível do Vinicius mais melancólico, o da tristeza de depois, o do grande céu do adeus, o do não existe paz quando o adeus existe, o da noite que vem iluminar, aos nossos passos tão sozinhos, todos os caminhos. Primeiro, acompanhando-se ao violão, Edu gravou a voz-guia. Se se estranhou, de início, o andamento mais lento, dois dias depois, quando seu timbre grave, preciso, fez-se ouvir sobre as cordas num arranjo que ele ainda não conhecia, constatou-se não haver o que mudar. Exigente consigo mesmo, Mauro discordou: seu sax alto poderia ter melhor desempenho que o conseguido no primeiro take. Foi o único solo que refez em todo o disco, convencido de que acabava bem o que começara bem.

Fonte: Biscoito Fino