domingo, 20 de fevereiro de 2011

O PERSEGUIDOR DAS CANÇÕES


Eric Nepomuceno, no Valor Econômico, em 05 de fevereiro de 2011

Chove forte na noite de uma terça-feira no Rio. E só mesmo uma chuva dessas, um aguaceiro desvairado, para fazer Edu Lobo, cuja pontualidade rigorosa é tema de brincadeira entre os amigos, atrasar exatos 16 minutos. Chega ao restaurante Gero, em Ipanema, de camisa cor de cinza-chumbo e calça jeans escura, e diz: "Com esta chuva, não preciso explicar meu atraso, não é mesmo?"

Edu Lobo é compenetrado, discreto. Nos últimos anos tornou-se extremamente caseiro. Quando sai para jantar - ele não costuma almoçar -, sabe exatamente aonde ir. Quando marcamos este encontro, disse: "Ah, vamos ao lugar de sempre, o Gero". Na mesa, é exigente: gosta de comer bem e é meticuloso na escolha do vinho. Durante anos e anos jantou uma vez por semana, compromisso rigoroso, com um trio de amigos: Chico Buarque, seu parceiro em dezenas de canções, e os cineastas Ruy Solberg e Miguel Faria. Era o responsável pela escolha do vinho. Os jantares agora andam raros, mas quando acontecem a mesma pergunta se repete: "Edu, que vinho vamos tomar?"

Conta que está chegando de uma longa jornada de trabalhos. Acaba de terminar, nesta terça-feira de chuva, a trilha sonora para o novo filme do diretor Hugo Carvana, "Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo", uma comédia que traz Tarcísio Meira de volta para os cinemas. E conta que também terminou o último dos três movimentos de uma suíte especialmente encomendada pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp. Na verdade, de 2004 para cá ele anda trabalhando muito. Aquele foi um ano cruel: Edu sofreu um aneurisma, foi operado de emergência, diz que viu a morte de perto. Recuperado, sentiu que muita coisa havia mudado em sua vida. E desandou a trabalhar. Voltou a fazer shows, gravou um documentário primoroso - "Vento Bravo", dirigido por Regina Zappa e Beatriz Thielmann - sobre sua carreira, tornou a compor, coisa que havia se tornado mais difícil.

O mais curioso talvez seja sua volta aos palcos. Desde que lançou "Tantas Marés", no ano passado, tem feito shows pelo Brasil. Conta aquilo que os amigos já sabem e o público tem percebido por onde quer que ele passe: se durante anos foi avesso aos palcos e holofotes, tanto que largou tudo - em 1969 - para ir estudar música na Califórnia, com o argumento de que não queria ter vida de cantor e sim de compositor, isso mudou. Pois Edu desandou a gostar, e muito, de fazer shows. Que, aliás, têm tido um êxito consistente.

Ele, que nunca foi exatamente um cantor das multidões, preferindo sempre ambientes pequenos, de atmosfera amena e intimista, vem lotando teatros de mais de 2 mil lugares.

Sim, Edu é compenetrado, discreto, meticuloso, exigente. Durante décadas teve um grau de exigência com seu trabalho que deixava os amigos impressionados. Um perfeccionismo rigoroso, que fazia que cada nota, cada acorde, fosse objeto de uma perseguição insaciável. Não que tenha afrouxado em seu rigor: apenas deixou que suavizasse um pouco.

Na sua geração - talvez a mais formidável da música popular brasileira no século passado - ele sempre se caracterizou pela seriedade em seu trabalho. Foi, de todos - e nesse "todos" estão nomes como os de Dori Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento -, o primeiro a compor um autêntico clássico do cancioneiro popular, "Pra Dizer Adeus". Depois, é verdade, todos eles compuseram clássicos. Mas Edu foi o primeiro e não ficou só em um.

Há uma história que ilustra bem o peso e o valor da sua música. Há várias, na verdade, mas vamos ficar com essa.

Conta-se que certa vez Jacob do Bandolim gravava um disco num estúdio ao lado de onde era gravada "Canto Triste", obra mestra de Edu e Vinicius de Moraes.

Num intervalo da própria gravação, Jacob, crítico implacável e impiedoso, resolveu dar uma espiada no estúdio vizinho. E, ao ouvir "Canto Triste", fez o seguinte comentário: "Até que enfim consigo ouvir uma música inédita!" É que ele achava quase tudo o que era feito naquela época mera repetição do que tinha ouvido pela vida afora.

Bem, pode ser que essa seja mais uma das típicas histórias do Rio que circulam com ares de verdade, embora ninguém diga que a tenha presenciado ou participado dela. Pois se não aconteceu, poderia perfeitamente ter acontecido: desde sempre, desde seus primeiros trabalhos, Edu despertou a admiração profunda não apenas de seus companheiros de geração, mas dos mestres que vieram antes. Não sem razão o maestro soberano Tom Jobim gravou com ele um disco antológico.

Aliás, é bom lembrar que Tom Jobim só dividiu discos (participou em muitos álbuns alheios, é verdade; mas dividir mesmo foram só esses) com quatro nomes. Dois deles eram intérpretes magistrais, Elis Regina e Frank Sinatra. Outro era um compositor elevadíssimo, Dorival Caymmi. O quarto nome foi Edu Lobo. Isso diz do valor que o maestro soberano dava à obra de seu mais fiel discípulo.

Pois é esse discípulo que agora escolhe o que vai jantar. Recomenda, enfático, o "stinco d'agnello" - uma canela de cordeiro. Não tem êxito: a fotógrafa escolhe um haddock, eu fico mesmo com uma massa ao vôngole. Já a segunda recomendação de Edu é acatada pela fotógrafa - que seu haddock seja acompanhado pelo purê de batatas do Gero, único no Rio, de qualidade excepcional. Na hora da escolha do vinho, após um rápido exame na carta, o eleito é um Dolcetto d'Alba. Edu conta que aprecia bastante os vinhos italianos, que conhece pouco dos espanhóis, menciona os brancos da Nova Zelândia, fala dos bons malbecs argentinos e dá por entendido que não precisa nem mencionar os franceses, que considera de outra categoria, incomparáveis. É como se existissem bons vinhos, vinhos excelentes, vinhos interessantes e, pairando acima de todos, os franceses.

Quando fala dos assuntos de sua predileção, Edu pode chegar a ser enfático. Tem hábitos peculiares, que mostram sua capacidade de exigir de si mesmo todos os detalhes do perfeccionismo e de uma curiosidade rigorosa, atenta. Por exemplo: gosta de ouvir música, especialmente música clássica, lendo a partitura. É uma forma de mergulhar nos meandros da música. Nada mais afastado da realidade, porém, que essa imagem de alguém profundamente dedicado a uma só forma de expressão ou circunscrito apenas à sua área de ação.
Os amigos continuam se surpreendendo com a paixão de Edu pelo cinema (prefere ver filmes em casa, numa televisão de tela imensa) e pelo leitor ávido, que é capaz de lembrar detalhes de seus autores prediletos. Discorre sobre filmes como se fosse um disciplinado estudioso de cinema e conhece de literatura o suficiente para conversar horas com quem é do ramo. Ou seja: nada mais distante dele que a imagem de um músico obcecado apenas pelo próprio universo. Ele tem, isso sim, a capacidade de esmiuçar sobre cinema, teatro ou literatura com a mesma segurança, ou quase, com que esmiúça a obra de músicos ou a forma de criar e estruturar orquestrações e arranjos complexos. Diz, por exemplo, que Debussy mudou a história da música e é capaz de falar horas explicando como foi que isso se deu. As orquestrações de Ravel ou Stravinsky, a música de Chopin, tudo isso pode ser tema de jantares prolongados.

Há, porém, algumas facetas de Edu Lobo que ficam escondidas do público e de quem não o conhece mais de perto. Ele é, sim, um sujeito contido, discreto, perfeccionista, exigente. Mas é, ao mesmo tempo, dono de um humor ágil e afiado, um cozinheiro aplicado (seus risotos, em especial o de abóbora, costumam deixar saudades) e, o que é mais surpreendente, um imitador impagável. Nesse campo, sua principal atuação é trazer de volta a voz, as frases e a maneira de falar de Tom Jobim. Também é craque ao imitar os pernambucanos, em especial o cantor e compositor Lenine. Faz essas imitações com compenetrada seriedade, como se estivesse afinando o violão.

Mas nesse jantar não haverá nada disso. Entre seu "stinco d'agnello" e o Dolcetto d'Alba, conversamos sobre sua maneira de trabalhar, de como surgem as composições que, muitas delas, muitíssimas, permanecem impregnadas na memória de quem as ouve. Edu observa que a maioria das canções que permanecem no imaginário das pessoas é de baladas, melodias lentas. Não se refere apenas às suas canções, mas bem que poderia: afinal, de "Pra Dizer Adeus" a "Beatriz", de "Canto Triste" a "Valsa Brasileira", são lentas e tristes as músicas dele que superam, em número, outros clássicos, como "Ponteio", "Vento Bravo" ou "Upa, Neguinho". Diz estar convencido de que as baladas, as canções tristes, "duram mais tempo, ficam mais, você precisa ouvir mais vezes para mergulhar fundo". Deve ter razão. Algumas de suas canções mais conhecidas nunca venderam muitos discos. Mas, passados os anos, são justamente as que mais emocionam o público, e as pessoas cantam com ele.

No show de lançamento de seu "Tantas Marés", no ano passado, ele deixou "Pra Dizer Adeus" como última música. O teatro lotado cantou com ele, e muitas, muitas pessoas choravam de emoção - tanta que o próprio Edu se juntou ao cordão da choradeira. As canções mais tristes, além disso, são as que mais dão trabalho na hora de ser feitas.

Para Edu Lobo, a música nasce a partir de um determinado desenho harmônico. É sobre a harmonia que ele constrói a melodia, e dessa junção vem, de maneira natural, o ritmo, e tudo se une na forma final. Fala de sua admiração por aqueles que considera grandes criadores de harmonias, começando, é claro, por Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim. Ressalta, na música popular, as harmonias de Dori Caymmi e Toninho Horta e avisa que vai parar de citar nomes para evitar as injustiças de um eventual esquecimento. Fala, também, daqueles que considera grande melodistas e se lembra de quatro exemplos: Ary Barroso, Dorival Caymmi, Noel Rosa, Custódio Mesquita.

Como todos os integrantes da sua geração, fala de Tom Jobim com uma admiração sem tréguas nem limites. De suas muitíssimas histórias com o maestro - foram muito amigos, Tom tinha carinho especial por Edu e seu trabalho - existe uma que ele repete sempre, e aí, uma vez mais, salta à arena o imitador insuperável. Ele conta que, quando os dois gravavam o disco "Edu&Tom", em determinada altura o parceiro de trabalho criou uma harmonia nova para "Pra Dizer Adeus". Foram alguns poucos acordes, exatos e surpreendentes, que mudaram - e para melhor, ele admite - a estrutura da canção. Pois na hora de gravar, quando Edu fez exatamente a harmonia criada por Tom Jobim, ouviu dele a seguinte e insólita frase: "Que beleza de acorde, Edu. Você é craque!"

Bem: não é só desse humor, dessas tiradas instantâneas, que ele e outros amigos de Tom, como seu parceiro Chico Buarque, têm saudades. Na verdade, o vazio deixado por Tom Jobim é imenso, mas não se trata de falar nisso agora, quando é pedida a segunda garrafa de Dolcetto e uma porção de bom queijo para arrematar esse jantar que já dura quase três horas. Depois de pedir licença delicadamente, a fotógrafa já se foi, enfrentando a chuva que continua, impiedosa, pela madrugada recém-iniciada.

Agora, Edu lembra-se de outras passagens de sua vida de músico. Fala da emoção infinita de quando, aos 19 anos, fez sua primeira música com Vinicius de Moraes, lembra-se de como foi conhecer ícones incontestes como o maestro Gil Evans - que, em parceria com Miles Davis, criou alguns dos discos insuperáveis do jazz - e da noite em que, morando em Los Angeles, deu uma carona para outro mito, o pianista Bill Evans. Relembra-se das madrugadas em que era despertado por telefonemas de Chico Buarque, empolgado por ter finalizado uma letra, e deixa escapar, discretamente, que anda sentindo falta de trabalhar com ele. E torna a falar de como é seu trabalho hoje, e de como é diferente do de seus inícios de carreira - uma carreira que começou há mais de 45 anos, e se manteve sempre vigorosa.

De seu disco "Tantas Marés", diz que "tem uma certa serenidade". Uma serenidade que foi alcançada com o tempo e com muito trabalho. No início, Edu compunha no violão. Depois de sua longa temporada na Califórnia, no fim dos anos 60, quando estudou orquestração, passou aos poucos para o piano. "É um instrumento com muito mais recursos, com mais extensão, a música passa a ganhar mais voo, mais amplidão", explica, e em seguida acrescenta: "Claro que estou falando o óbvio, mas é que quando gosto de um assunto acabo falando muito e dizendo o óbvio..."
Desde aquele início já longínquo, sua maneira de compor continua basicamente a mesma. Precisa de isolamento, de recolhimento. Diz que jamais conseguiu fazer música em quarto de hotel ou sentado em algum café, rabiscando ideias e notas num guardanapo. Precisa de tempo e de saber que está sendo pressionado de alguma forma. E que por isso gosta de trabalhar atendendo a encomendas - trilhas para filmes, para peças de teatro, para balés. Aliás, é bom lembrar que quase toda a sua obra com letras de Chico Buarque, canções imbatíveis, nasceu de encomenda.

Agora já passou da 1 da manhã, hora de ir embora. E lá vai ele, de Ipanema para a casa espetada numa colina de São Conrado. Lembra que quando comprou o terreno e fez a casa projetada por Marcos Vasconcellos, tinha uma vista absoluta do mar. "Dava quase para ver Angola", comenta, rindo. Agora, aparecem apenas nesgas do Atlântico no meio do paliteiro de prédios erguidos lá embaixo.

Dessas coisas ele diz sentir saudades. E também dos discos de vinil, dos musicais da Metro, do deslumbramento que era o cine Metro com seu ar-condicionado poderoso, e de quando era possível ir a uma festa e na volta ir cochilar na areia à espera do amanhecer. E dos amigos que se foram, e de coisas que já não existem.

Mas, antes de parecer saudosista, volta o humor, aquele humor. E lá se vai ele, para o casarão branco e avarandado, onde aprendeu a não ter medo de ficar sozinho, onde vive cercado pelas árvores que vê da janela do estúdio onde passa horas a fio, cercado de livros, discos e partituras, na infinita perseguição da canção que vai chegar.

Pode ser que essa canção demore. Aliás, costuma demorar. Mas, perseguidor tenaz e paciente, Edu Lobo saberá, uma vez mais, apanhá-la no ar.