quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

EDU LOBO É IRADO, TÁ LIGADO, BRÓDI?


Por Arnaldo Bloch, do jornal "O Globo"

Estacionei a bicicleta em frente ao BB
lanches e, enquanto acertava as extre-
midades da tranca, ouvia a conversa
da rapaziada.
— Aquele som é irado. Frenético.
— Caraca, bródi, mandaí. Fiquei bolado.
— Sinistro.
Atei o cadeado, empinei o nariz e tive cer-
teza de que o som era um rap, um funk, ou
algo que não soasse minimamente eficaz sem
uma roda de subwoofers estourando o asfalto.
Entre as gírias, contudo, identifiquei elemen-
tos estranhos ao contexto aprioristicamente
estabelecido (precontexto?):
— Anos 60, bródi, a música brasileira bom-
bava, Edu Lobo era sinistro, compositor de
responsa. “Ponteio” ganhou o festival, tá liga-
do? “Ponteio”, tá ligaaaaado, bródi?????
Pisquei umas três vezes para checar se era
a endorfina que me fazia ouvir vozes e dei
uma porrada no tornozelo em vias de câim-
bra. Mas as vozes não davam trégua:
— Viu o Quarteto Novo no acompanhamen-
to, bródi? Quarteto Novo e Edu Lobo era um
esculacho, Hermeto quebrava tudo.
Era isso mesmo: os presumidos três pate-
tas, que minutos antes não passavam de uns
manés mais alienados que a própria aliena-
ção, convertiam-se, num átimo, em adolescen-
tes esclarecidos, discutindo, com os recursos
idiomáticos à disposição, o panorama da mú-
sica brasileira nos anos 60, e faziam juízos de
valor numa escala primária, mas correta.
Dias antes, num debate do qual participara
na Biblioteca Nacional, para um público de
ensino médio (com Mauro Ventura e Vítor Ió-
rio na mesa), alguém, entre os catedráticos
presentes, puxou a ladainha:
— A juventude não lê. Não sabe de nada.
Fica à mercê da televisão e da internet.
Eu, que sou bem mais jovem que o dito ca-
tedrático, já defendi muito essa ideia, que po-
de ter lá suas razões de ser. Mas, diante de um
público de ensino médio atento, simpático e
interessado, puxei pelo meu registro mais mo-
derado e, talvez, temperado pelos primeiros
ventos da maturidade.
— Quer saber? Cansei dessa conversa de
que a juventude não lê. E, se não lê, de quem
é a culpa? Dos professores, do ensino, do des-
prezo pelo conhecimento de humanidades,
do espírito de competição acirrada e de inte-
resse ultraespecializado, da falta de ideias e,
sobretudo, da ausência de um chefe de Esta-
do que faça a revolução pela educação, aque-
la que ninguém tem coragem de assumir co-
mo prioridade? — discursei.
Uma semana depois, em bate-papo com a
atual turma de estagiários do GLOBO (cheia
de gente a fim de inovar) conduzido pelo Luiz
Paulo Horta, eu repercutia minhas impres-
sões, partindo para uma autocrítica de meus
tempos de adolescente em Copacabana.
— A gente fala muito das novas gerações,
mas se eu for analisar, passei a minha juven-
tude assistindo a “Star Trek”, “Vila Sésamo”,
chupão da Sandra Bréa na novela das dez e,
nos intervalos, folheando revista de mulher
pelada. Tudo bem que as noites eu consumia
em claro lendo clássicos (indicados por meu
pai, não pela escola) e tentando escrever
uma obra-prima (nos intervalos, mais mu-
lher pelada...), e pela manhã mamãe achava
que eu estava tuberculoso. Consciência po-
lítica, nascido que fui em 1965 e não tendo
tido pais militantes, a minha, então, era ze-
rinho da Silva. Só acordei para a vida ao gon-
go de Vianninha e Millôr, quando a censura
caiu aos 45 do segundo tempo, e os teatros
fervilharam.
Tudo isso para dizer que essas sentenças
sobre a juventude dos outros são o maior pa-
po brabo. Um colega aqui da arte discorda:
diz que o tal encontro no bicicletário do BB
lanches foi como um raio divino, exceção das
exceções, o cara citando Edu devia estudar
música, daí aquela espuma de conhecimento
borbulhando no mar de gírias.
Sei não. Saber escolher o que ler e o que
saber na internet não é muito diferente de se
antenar com as prateleiras de uma biblioteca.
Sem interesse, sem paixão, não se vai encon-
trar nada que preste, no papel ou no monitor,
hoje ou há cem anos, com as gírias de hoje ou
as do baú do tataravô.
Dizem que o mundo atual é tribalista. Quem
quiser conversar sobre o quanto Edu Lobo é
irado, tá ligado, bródi? (no meu tempo eu diria
Edu Lobo é um barato, morou, xará?, e meu pai
talvez dissesse Edu Lobo é bacana, manja,
meu chapa?, e vovô diria que o Edu é batuta,
supimpa, XPTO, e vamos), mas como eu ia di-
zendo, quem quiser encher a bola de Edu Lo-
bo vai encontrar a turma certa na casa de su-
cos certa, na gíria certa, sem prejuízo ou ex-
clusão da turma do funk, isso quando as duas
turmas não se cruzarem nas fusion sessions ou
nas pistas ao som de remixes geniais. E digo
mais: uhuuuuu, isssssssa, cáspite, caraca.
Culpar a juventude é o mesmo que culpar a
política, o jornalismo, o direito, a medicina,
pelos erros do político, do jornalista, do juiz,
do médico. O mesmo que culpar o funk pela
violência dos indivíduos. É o medo de olhar
para o umbigo da própria ignorância, o enve-
lhecimento das ideias, a preguiça de transfor-
mar, de compreender as novas falas quando
estas anseiam por conhecimento mas rejei-
tam o bolor e o peso de métodos, currículos e
formações ora substanciais no conteúdo e ve-
lhas no código, ora vazias de saber e mais mo-
dernas que a modernidade.
Viva a juventude. Viva Edu Lobo. Viva o
funk. E viva a educação.