quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

PARTE I: A FAMÍLIA

Entrevista realizada com Edu, em agosto de 1999, com a participação de Santuza Cambraia Naves, Kate Lyra, Heloísa Tapajós, Juliana de Mello Jabor, Micaela Neiva Moreira, Kay Lyra, Silvio Da-Rim e Daniel Carvalho. Faz parte do livro "MPB: Construção / Desconstrução", publicado em 2004, pela Editora da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais.

Edu, aos três anos, com a mãe, Maria do Carmo Cavalcanti


Santuza: Eu gostaria de começar a entrevista perguntando sobre a sua origem familiar. Essa pergunta é necessária, porque a sua geração - anos 60 - é muito marcada por músicos populares que têm origem de classe média, ao contrário de gerações anteriores. E a sua origem familiar é importante também pela sua passagem por Recife, seus contatos com Recife. Você nasceu em 1943 e é filho de um compositor famoso, Fernando Lobo, que é de Recife. E a sua mãe também. Você costumava passar as férias em Recife. E eu queria que você me dissesse em que medida a sua família foi importante para a sua formação musical.

Edu: A família é pernambucana dos dois lados. Eu era na época o único carioca na família inteira, quer dizer, carioca porque nasci aqui, mas pernambucano de sangue. Família enorme do lado da minha mãe, um pouco menor do lado do meu pai. E tinha essas férias que eu passava em Pernambuco e que acabaram sendo importantíssimas também para a minha profissão. Férias desde bem pequeno até os 18 anos, todos os anos, sem exceção. E eu me lembro claramente que eu estudava muito, muito mais pelo interesse de não perder essas férias do que exatamente pela vontade de estudar. Eram 3 meses e meio, 4 meses às vezes, porque eu conseguia até 10 dias a mais de bonus, porque eu tinha passado de ano com boas notas. Esse convívio, enfim, acabou sendo determinante para a música que eu acabei fazendo.

Edu com o pai, Fernando Lobo, e o filho Bena, foto de Luiz Silva

Santuza: Você ouvia muito música lá em Recife? Você teve contato com as músicas regionais?

Edu Lobo: Muita coisa, quase tudo daquelas coisas populares: os frevos, os sons que vinham da rua, os pregões dos vendedores de frutas, as cirandas, os maracatús.. Na época, o carnaval era completamente diferente de hoje em dia. Então tinha muito esse negócio de carnaval de rua não só de Olinda - que ainda tem um pouco -, mas na época era maior o acesso às festas populares. Era muito maior o interesse por isso do que existe hoje em dia. E se cantava muito em casa. Tinha uma varanda na casa da minha tia e as pessoas vinham e cantavam, tocavam violão. Eu tocava acordeon na época e todos cantavam. Outra coisa que eu estou lembrando agora, que é uma imagem fortíssima para mim -parece um filme do Fellini - é a chegada em Recife: o navio atracando devagar e a família inteira da minha mãe no cais. Então eu via de longe aquela massa humana. É uma lembrança extraordinária. Todos iam: os irmãos de minha mãe com os filhos todos, ninguém faltava. Então eram 70, 80 pessoas no cais. Aquela mancha e o navio ia chegando. Eu ia descobrindo quem estava ali, ia focando aos pouquinhos.

Santuza: E tinha alguém, na família da sua mãe, ligado à música? Sua mãe gostava de música?

Edu: Gostava. Mas ligado, quer dizer, alguém que tenha feito isso para valer, não. Eu tinha um tio poeta, em Recife, um dos irmãos mais velhos de minha mãe, meu tio Mano.

Santuza: Então, músico mesmo na família era seu pai.

Edu: Músico era meu pai, que na verdade era mais jornalista do que músico. Compunha sem violão, sem instrumento. Como o Antônio Maria, compunha assobiando. Ele tinha estudado violino, quando jovem, segundo êle, sem muito empenho.

Santuza: Tem a ver com aquela geração que compunha em mesa de bar.

Edu: Exatamente. Fazia letras, cantarolava, aí alguém tocava, e aí a música ia sendo feita.

Santuza: Depois alguém passava para uma partitura.

Edu: Alguém passava para uma partitura. Enfim, isso tudo teve ter ficado na minha cabeça, evidentemente, nesses anos todos. Então quando eu comecei a trabalhar em música, aprender com o pessoal da bossa nova, eu acho que uma saída que eu devo ter encontrado, sem muita programação - porque foi uma coisa mais intuitiva do que racional -, uma maneira de eu fazer alguma coisa que não fosse repetir o que estava sendo feito, foi misturar essa informação que eu tinha de música nordestina com toda a escola harmônica que eu tinha aprendido na bossa nova. E a minha música começou a se desnvolver dessa maneira. Acho que foi uma saída para ter uma assinatura, para ter uma característica própria. Tinha muitos craques naquela época. Então, quem tentava entrar no estilo do Tom [Jobim], ou do Carlinhos [Lyra], ou do Oscar [Castro Neves], ou do Baden [Powell], ficava um sub de qualquer um deles. Eu acho que a saída, o processo até de defesa, é você tentar seu caminho próprio de alguma maneira. Eu acho que concorreu então essa lembrança toda das músicas, das canções, dos frevos... Eu comecei a fazer frevos e baiões, o que não era comum na época. Existiu um primeiro movimento da bossa nova que era mais ortodoxo, que não permitia muitas coisas. Tinha aquela coisa: era bossa nova e tinha que ser aquilo. O Sérgio Ricardo, o Carlinhos Lyra e o Baden foram três pessoas que começaram a procurar outros caminhos. O Carlinhos começou a fazer samba de morro, a misturar, a conhecer os compositores mais de perto. O Baden, com o Vinicius, partiu para os afro-sambas influenciado por um grande músico e extraordinário compositor, o Moacyr Santos. Depois o João do Valle, a história toda da Nara [Leão] gravando Cartola, Zé Keti e Nelson Cavaquinho, logo ela, a musa da bossa-nova! E começaram a perceber que o Brasil não é só o Rio de Janeiro. E que toda essa mudança harmônica, que foi importantíssima, que a bossa nova conseguiu e consagrou, podia sair do Rio de Janeiro e procurar os outros sons que havia no Brasil, que são milhares. Enfim, essas misturas então começaram a ser feitas, e cada músico as fez à sua maneira. E eu fui buscar onde eu sabia mais. Então eu acho que era uma coisa que estava no ar nessa época e como eu era muito jovem, eu devo ter apreendido isso. Por isso que eu estou dizendo que não foi uma coisa consciente. Eu não fiz um programa: era mais o desejo de ter uma assinatura, uma marca.